Olhar Crítico

“Armadura cultural”

Começo meus olhares deste domingo com um título retirado do livro A fonte da autoestima (SP: Cia das Letras, 2020), da escritora estadunidense Toni Morrison (1931-2019), mais especificamente do capítulo O lar do estrangeiro, objetivando analisar a literatura africana e de como aquelas enunciações podem apresentar a seus leitores como as investigações ficcionais permitem aos narratários testemunharem como o europeu “deslegitima o nativo, inverte alegações de pertencimento”(2020, p. 25). Em minhas pesquisas sobre o universo do racismo brasileiro, observo vários elementos semelhantes aos que os escritores africanos apresentam em suas enunciações e um deles veio à tona na semana que terminou ontem.

 

Sentença

Uma magistrada de primeira instância duma cidade paranaense no corpus de sua sentença, de 105 páginas, refere-se a um dos apenados de forma racista quando afirma que o mesmo, por seu pertencimento “racial” é dado a participar de grupos de criminosos. Ela, via Conselho Nacional de Justiça tentou justificar a grafia, dizendo que a observação foi tirada do contexto. Aí eu te pergunto, meu caro leitor, por que, a juíza abordaria a questão étnico-racial do apenado, quando para a sua dosimetria deveria ser pautada as provas nos autos processuais? Creio que a resposta pode ser dada não só pelo título do aforisma anterior, bem como pelo capítulo 39: “Um gatuno” do romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis (1839-1908). Num determinado momento da narrativa, a multidão corre atrás de um cidadão. Ao ser apanhado, diz que não roubou nada e que é um cidadão livre.

 

Escravismo

Por essa observação, evidencia-se que o sujeito era preto, logo, seria culpado de alguma coisa. Em vários escritos que já estampei aqui nessas páginas abordei várias vezes essa temática, então, não vou retomá-la para não agastar meus leitores, todavia, a sentença da juíza pode ter extrapolado às provas contidas nos autos processuais, o que levará um cientista social que estuda o racismo estrutural brasileiro enquanto fenômeno social, conforme nos informa Florestan Fernandes (1920-1995), a definir o apenamento mais como uma ação preconceituosa e escravagista do que realmente a aplicação da letra fria da lei. Aguardemos o andar da carruagem, por hora, fica aqui o registro de minha indignação pela adjetivação excessivamente racista cometida pela juíza de primeira instância num espaço em que deveria primar pela imparcialidade e se deter apenas aos fatos e provas apresentadas pela investigação.

 

Medalhão

Tenho claro e, creio que todos os meus leitores dominicais também são cônscios de que a educação é a ferramenta que permite abrir e em seguida eliminar essa “armadura cultural”, como diz a escritora estadunidense Toni Morrison, que faz com que as pessoas que têm plena consciência e possuidoras de mecanismos para eliminar o racismo estrutural e o preconceito social e econômico. Se os detentores de determinados saberes, como a magistrada que ilustra os aforismas anteriores, acabam sendo traídos não por suas canetas e nem pela letra fria da lei, mas sim pelos valores que lhe vão em suas essências, então só me resta observar aqui que Machado de Assis diz no conto Teoria do medalhão [olha só que título é bem apropriado, pois medalhão é uma espécie de gíria para se referir aos possuidores de determinados galardões, titulações nobiliárquicas e portadores de consumos conspícuos], estaca correto quando dizia as pessoas não conseguem abandonar seus hábitos. Se isso é fato, como a situação poder-se-á ser alterada?

 

Educação

Bom. Deixando a questiúncula preconceituosa estampada numa decisão judicial para outro momento e detendo-me no universo da educação, informações que chegaram até este colunista dão conta de que a Escola Estadual Joana Helena Castilho Marques a partir do próximo ano letivo oferecerá aos seus alunos e à comunidade estudantil interessada, um curso pré-vestibular. O projeto que é desenvolvido pela unidade educacional está dentro de um programa que será elaborado para auxiliar os alunos deste ano que ficaram fora da sala de aula por conta da pandemia. Professores, educadores e as autoridades pedagógicas sinalizam que em 2021 serão necessárias ações objetivando sanar as lacunas que ficarão deste ano letivo de 2020.

 

Caminho

Entendo que a educação é o caminho mais apropriado para aqueles que não nasceram em “berço de ouro”, como se diz no jargão popular para se referir àqueles que já aportaram aqui no orbe com um cabedal financeiro e material preparados pelos seus ancestrais. Mas como isso pode ser possível, nesse momento em que as autoridades palacianas sinalizam com cortes nos repasses às 68 universidades públicas federais e nos mais de 30 institutos federais? É interessante notar que aqueles que se propõe a discutir tais temáticas, aqui nos pátios palacianos, não conseguem fazer a devida conexão de sentido [Max Weber – 1864-1920] e entender que qualquer postura que o governo federal vier a tomar no campo educacional e de saúde, visando cortes nos já minguados recursos, afetam todos, indistintamente de suas condições sociais, econômicas e religiosas.

 

Universidades públicas

Em virtude dessa vergonhosa verborragia e defenestração à educação e ao mundo pedagógico, é que a ação da equipe gestora da escola Joana Helena – na última sexta-feira realizou seu sarau virtual por meio da sua página no Facebook – ganha importância diante da empreita que está sendo gestado, bem como os docentes que já se comprometeram a atuar a execução do programa, cujo escopo é construir no corpo discente o interesse pelos estudos e o conhecimento sobre o funcionamento das universidades públicas. Só no Estado de São Paulo, fora os Institutos Federais, há três unidades públicas paulistas: UNESP, USP, UNICAMP – as três tem vários campi espalhados pelo interior do Estado. Há Universidade Federal de São Carlos, Universidade Federal do Grande ABC e Universidade Federal de São Paulo. Todas gratuitas, com acesso mediante conhecimento e não por sobrenome – talvez esteja aí o porquê dum discurso contra esses centros de excelência ter espaço na sociedade: democratização do saber.

 

Pandemia

Nos olhares da semana passada deixei de abordar a questão da pandemia, mas hoje volto meu foco a ela. Até o momento em que essas linhas eram traçadas, os dados davam conta de que haviam sido registrados 406 casos; outros 242 aguardam confirmação via exames laboratoriais. Foram registrados até aquele momento, 13 mortes. Talvez o dado positivo nesse contexto tanático esteja no número de recuperados: 209. De qualquer forma, o quadro vem se complicando e a quantidade de infectados crescendo. Outra questão periclitante e que cabe aqui uma interpelação: quantas das 179 pessoas que estavam de quarentena realmente permaneceram em suas casas? E-mail: gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *