O ser em si da escrita

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Neste último texto antes do dia dedicado aos mortos, pretendo conduzir-vos – quanta pretensão minha – meus caros leitores a uma reflexão, na qual entendo ser importante compreendermos, não somente o ato da escrita, mas o sentido dela, bem como o escopo que o ser humano objetiva atingir quando usa o sopro verbal para dizer alguma coisa. Posto isto, retomo as minhas práticas antigas, bem ao modo socrático e a sua maiêutica: perguntando. O papel da Filosofia, antes de dar respostas, é interpelar o ser dotado de vozes, escritas e o uso de outras ferramentas que buscam sempre auxiliar os semelhantes que querem compreender o mundo que os cercam, cheios de signos com quantidades infinitas de significados e significantes. Diante do exposto, lanço-vos meus caros a primeira questão: por que a atual humanidade usa e abusa do pronome possessivo: meu, teu, e por aí afora? Por que será que há tanta dificuldade em partilhar alguma coisa com alguém, mesmo que seja uma palavra amiga? Por que há uma infindável quantidade de pessoas que adoram sentenciar a vida alheia? Desculpem-me meus amigos, pretendia apenas fazer uma perguntinha, contudo, a partir dela surgiram outras, antes mesmo que vocês tivessem adquirido fôlego para responder a primeira interpelação.

Sendo assim, pretendo buscar as respostas na medida em que as temáticas e proposituras forem sendo externadas pelas linhas que confeccionarei enquanto vocês decidem quando e como farão vossas partilhas diárias. Começo pela primeira pessoa do singular, portanto, eu! Por que eu escrevo semanalmente a vocês aqui neste espaço? Penso que tenho algo a dizer, ou melhor, escrever! E o ato da escrita, a exemplo da palavra, pode ser bem direcionado se aquele que a pronuncia estiver imbuído das boas intenções, e, que estas não sejam somente as questões materiais e de se achar o dono da verdade, mas apenas e tão somente buscar contribuir para que todos possamos encontrar o melhor caminho que nos leve a um futuro melhor, pois o presente está muito carregado de mensagens que não edificam bons pensamentos; pessoas envolvidas em atitudes negacionistas quando o mundo está em plena pandemia.  Qual é o objetivo em não aceitar a letalidade de um vírus? Por que tentar refutar que o mundo vive uma pandemia descomunal, ceifando vidas de centenas de milhares de pessoas? Pois bem! Da mesma forma que um pai, professor, educador ensina as crianças às primeiras letras, também podem instrui-las a não odiar, a não se acharem melhores que seus semelhantes por questões materiais. Aliás, o primeiro ensinamento é aquele em que deve se inculcar no aprendiz que não se deve fazer com o outro o que não se deseja para si. Todavia, por que se faz diferente disso?

Posso utilizar aqui de diversos exemplos para sustentar esse olhar, contudo, ficarei com um apontamento feito pelo crítico literário e escritor estadunidense James Baldwin (1924-1987) sobre a situação do negro norte-americano, que pode ser útil para referenciar a discussão dos descendentes de escravos aqui no Brasil. “Desde que os negros vieram para este país [EUA], sua maior, sua única conquista devastadora foi a Abolição, algo que hoje ninguém mais vê como fruto de impulsos humanitários. Tudo que foi feito de lá para cá evoca a linguagem infeliz de ossos sendo jogados para uma matilha de cães que se tornaram perigosos por estarem famintos. Se essa avaliação parece ser de um pessimismo deliberado, não é porque se queira representar a situação como pior do que ela é na verdade; eu gostaria apenas de acrescentar ao que normalmente se argumenta a observação de que, por mais que tenha havido episódios de boa vontade e zelo autênticos, e esforços penosos e honrados tenham sido empenhados no sentido de melhorar a posição do povo negro, na verdade a posição da maioria dos negros não mudou” [James Baldwin. Viagem a Atlanta. In. Notas de um filho nativo. Trad. Paulo Henrique Britto. SP: Cia das Letras, 2020, p. 101-102]. Embora o texto diz respeito à uma etnia em específico, penso que ele permite algumas reflexões de ordem mais ampla, principalmente no âmbito da formação do sujeito social e o uso que este faz da escrita e da palavra.

Sempre digo que o que nos diferencia dos demais animais, é o fato de dominarmos tecnicamente o som e, a partir dai, criamos signos com múltiplos significados e construirmos nossas relações sociais e afetivas a partir desses significantes. Desta forma, por que alguém diria a seu filho que este é melhor do que o amigo? Será que a superioridade está na tonalidade da pele? No saldo da conta bancária, como disse aquele empresário enchovalhando o policial, mas incapaz de resolver uma conenda doméstica com a esposa, com quem dividia o leito nupcial e tendo um filho? Da mesma forma como a escrita tem lá seus significados, os sons e as palavras quando emitidas por sujeitos atormentados pelo medo de deixar de existir ou por questionamentos que não pode responder, tem seus sentidos e é importante compreendê-los, não para sentenciar seus emissores, mas para entender porque são emitidos da maneira como são. Posto isto, por que um indivíduo daria espinhos a alguém quando poderia dar pétalas, ou melhor, por que um pai daria serpente para o filho quando este lhe pede peixe? Uma simples pergunta que, creio eu, levará o sujeito a caminhar léguas distantes no afã de entender o que disse e as raízes do conteúdo de sua fala. Parece-me que o trajeto que este fará já é conhecido e tem início lá no seu processo de socialização, ou seja, quando começa sua interação com o mundo ao seu redor, os respectivos valores, princípios éticos e morais que nortearão seus relacionamentos com as demais pessoas.

O meu objetivo neste texto é tão somente o de chamar a atenção dos meus leitores para o mundo da escrita e de como o sentido que damos a ela tem desdobramentos no universo social dos sujeitos, bem como a visão de mundo dessas pessoas também estará expressa no que escrevem. Desta forma, o ser em si da escrita está umbilicalmente ligado à construção do ser em si que escreve, todavia, faz-se necessário que antes de se colocar a dizer algo, por meio da escrita ou da radiodifusão, o postulante a escritor, radialista ou algo assim, faça uma reflexão interna da sua própria constituição enquanto ente social. Esse processo é necessário para que as interlocuções com quem os lê ou escuta seja plenamente equlibrada. Do contrário, o dito e o escrito serão meramente formas ludibriadoras utilizadas pelos propaladores para se chegar a um objetivo específico que é sempre aquele governado pelo “eu”. Neste sentido, eu vos pergunto meus caros leitores, o que leva um sujeito a se achar melhor do que o seu semelhante por que detém o monopólio do que pensa ser um saber? Nesse campo é possível chegar à ideia da violência simbólica.  Mas ai é outra questão.

Creio que consegui alcançar o meu escopo nessa tentativa de refletir sobre o ato da escrita e da palavra e suas transformações em falas que buscarão sempre encontrar um interlocutor. E neste sentido, o conteúdo do dito deve sempre ser avaliado com a sua objetividade através das repostas às seguintes interpelações: por que dizer, para dizer e qual o sentido do propalado? Se observarmos que a palavra é sempre soprada a partir do seu sentido construido e sustentado pelo signo verbal, entenderemos os motivos que levam o ser humano a tanto ressentimentos e acreditar em mensagens que distorcem a verdade para atingir um fim político-partidário, com propósito de governança sobre uma massa amorfa que espera que tudo caia do céu, como naquele cerimonial do beija-mão construido no Brasil monárquico.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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