O real imaginado e a farda do racismo

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Qual seria o imaginado que se tornou real na vida individual de cada um dos sujeitos sociais que existem no orbe brasileiro? Parece-me que esta é uma importante interpelação neste feriado paulista que não se sabe ao certo se é ou não, tamanha confusão se perpetrou no existir dos moradores dos 645 municípios que formam o Estado de São Paulo. Hoje, 9 de julho, é uma data significativa, pois o ano de 1932 marcou a chamada Revolução Constitucionalista ocorrida para frear os mandos e desmandos de um governante que estava iniciando a sua jornada no comando ditatorial da Nação: Getúlio Dorneles Vargas (1882-1954). Este ocuparia o poder por longo tempo, dando início ao período populista chamado de época varguista.

Embora tenha enveredado inicialmente por esse caminho recheado de idas e vindas nos desmandos da política brasileira, não ficarei nele e nem nos escombros da politicalha nacional, até porque muito do que se passa hoje é um constructo da péssima formação, para não dizer nenhuma, política dos cidadãos que constroem este país a partir do que foi depositado no seu pretérito, portanto, a colheita de frutos que podem ser amargos ou adocicados, dependendo do histórico de quem os colhe levando em conta suas ancestralidades. Por exemplo, quais são as chances de um cidadão de pele escura colher uma flor bela se os ancestrais foram tratados como mercadorias aviltadas em suas condições humanas? Muitos dirão que são as mesmas de qualquer cidadão comum! Creio que a resposta possa ser essa, caso o foco seja o indivíduo e não os seus marcadores sociais, entretanto, é possível         que seja outra em virtude da formação da sociedade a partir de indivíduos que se coletivizam na medida em que se relacionam com os demais tendo como pressuposto ações sociais visando um fim, conforme nos diz o pensador alemão Max Weber (1864-1920). Desta forma, a questão passa a ser: o que irá nortear a conduta deste sujeito?

Se eu quiser uma resposta levando em conta os referenciais metodológicos tanto de Weber, Karl Marx (1818-1883) e Emile Durkheim (1858-1917) [autor do livro A educação moral], tenho que começar pela seguinte interpelação: quem influencia quem? Isto é, a sociedade determina o destino do sujeito social ou é o contrário, o indivíduo que constrói o seu presente e futuro a partir das próprias forças e vontade? Muitos que estejam lendo as linhas que se seguem podem ter opiniões distintas, observando sempre determinados pressupostos aqui e ali usando como referenciais distintos marcadores sociais, contudo, podem deixar de enfatizar as estruturas sociais que muitas vezes são enormes engrenagens que trituram o homem naquilo que ele tem de mais sagrado: a sua humanidade. Tendo isso como premissa, faço outra pergunta: quantos brancos receberam cusparadas em seus rostos, desferidas por um preto [prefiro essa definição do que negro que não indica tonalidade da pele e nem etnia, mas sim condição]? E se já, quais foram a reações? De antemão, já sabia o motivo de tal ato abjeto? Será que o homem nasce preconceituoso? Meus leitores devem achar que a discussão é inócua, pois muito se diz, mas de pouco eficácia. Talvez isso ocorra, justamente porque crê-se que determinados comportamentos se mudam com decretos e leis, porém, de acordo com o contista Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), em sua enunciação Teoria do medalhão, faz-se necessário, primeiro, alterar os costumes e somente depois as leis. Isso faz com que eu me reporte a Immanuel Kant (1724-1804) e seus imperativos. Se eu percorrer as questões verbais, verificarei que os verbos no imperativo são sempre aqueles que implicam em “ordens” e, se isso é fato, vos pergunto meus caros leitores, de onde proveria esses comandos? Das leis ou das famílias durante os primeiros passos dados pelas crianças em seus processos de socializações primárias.

Para tentar compreender um pouco mais essa questão da distinção entre o real imaginado e o concretizado, se deve observar que se o caminho for o de buscar a alma do brasileiro – aqui penso a partir de Platão quando este define a “alma” como um ser abstrato que movimenta um corpo. Neste sentido, esse corpus é a sociedade, portanto, o espírito do povo brasileiro (Geist des brasilianischen Volkes) é respaldado por quais princípios? A cordialidade instrumentalizada pelo bovarismo, seguindo a observação de Sergio Buarque de Holanda (1902-1982) em Raízes do Brasil. Conforme já apontei em outro lugar, bovarismo advém de Emma Bovary, personagem principal do clássico romance do realismo francês Madame Bovary, de Gustave de Flaubert (1821-1880), e diz respeito à vontade de o brasileiro estar em outro país que não o Brasil. Dito de outra forma: o cidadão gostaria de ter outra nacionalidade e não a que tem, isto é, habitando a terra que nos legou significativos escritores como Afonso de Henriques Lima Barreto (1881-1922), entre outros significativos literatos. Se o ser em si do cidadão que se escuda não no que se tem e se é, mas no que gostaria que fosse, recusando-se o que se é, não sabe direito aquilo que é e seu pertencimento, contudo, se se repete os valores éticos e morais transmitidos pelos familiares, isto significa que Machado de Assis está correto ao afirmar que o trabalho é alterar os costumes, herdados duma estrutura escravagista que perdurou por mais de três séculos nos quais o trabalho nunca foi valorizado, pois os valores aferidos das atividades laborais eram conquistados sem esforço algum, violentando o elemento africano e o indígena. Desta forma, um branco nunca saberá o que significa receber uma cusparada no rosto por conta da cor de sua pele. Assim como o seu ethos geracional não tem precedente no trabalho não pago, pois quando do fim do escravismo (13 de maio de 1888), o governo monárquico estimulou a vinda do imigrante a partir dos cofres públicos, relegando o ex-escravo às masmorras e as encostas dos morros. O cárcere era o destino daquele preto que vagava de cidade em cidade em busca de trabalho, mas era apenado sob acusação de vadiagem.

Enfim, essa minha leitura do mundo real não é condizente com o universo imaginado no âmbito das ideias onde é possível se construir a perfeição, mas coaduna com o que diz a filosofa Djamila Ribeiro na obra Pequeno manual antirracista. Segundo ela, o processo de compreensão do racismo “envolve uma revisão crítica profunda de nossa percepção de si e do mundo. Implica perceber que mesmo quem busca ativamente a consciência racial já compactuou com violências contra grupos oprimidos. O primeiro ponto a entender é que falar sobre racismo no Brasil é, sobretudo um debate estrutural. É fundamental trazer a perspectiva histórica e começar pela relação entre escravidão e racismo, mapeando suas consequências. Deve-se pensar como esse sistema vem beneficiando economicamente por toda a história a população branca, ao passo que a negra, tratada como mercadoria, não teve acesso a direitos básicos e à distribuição de riquezas” (Pequeno manual antirracista. SP: Cia das Letras, 2019, p. 8-9). Sendo assim, não bastam decretos, é preciso despir do corpo brasileiro a farda do racismo, ajudando-o a exteriorizar a alma que lhe interna, não a que professa socialmente em virtude de seus condicionantes e marcadores sociais que “pode ser um simples botão de camisa”, de acordo com o conto O espelho: esboço de uma nova teoria da alma humana, de autoria de Machado de Assis (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 23).

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br

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