O real e o ficcional numa enunciação

Gilberto Barbosa dos Santos

 

O pensador grego Aristóteles diz em certo momento de seu livro Poéticas que “o poeta conta, em sua obra, não o que aconteceu e sim as coisas quais poderiam vir a acontecer, e que sejam possíveis tanto da perspectiva da verossimilhança como da necessidade”. Em outro ponto, acrescenta que o historiador, por sua vez, relata em seus escritos “os acontecimentos que de fato sucederam”, isto é, aquilo que realmente aconteceu. “E é por esse motivo que a poesia contém mais filosofia e circunspecção do que história; a primeira trata das coisas universais, enquanto a segunda cuida do particular. Entendo que tratar de coisas universais significa atribuir a alguém ideias e atos que, por necessidade ou verossimilhança, a natureza desse alguém exige; a poesia, desse modo, visa ao universal, mesmo quando dá nomes a suas personagens. Quanto a relatar o particular, ao contrário, é aquilo que Alcebíades fez, ou aquilo que fizeram a ele” (SP: Abril Cultural, 1999, p. 47). Acrescentando a essas afirmações, creio que seja alvissareira uma colocação feita pelo filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) em seu livro O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo (SP: Cia das Letras, 1992, p. 59). Segundo ele, “o poeta só é poeta porque se vê cercado de figuras que vivem e atuam diante dele e em cujo ser mais íntimo seu olhar penetra”.

O escritor francês Marcel Proust (1871-1922), num pequeno livro dedicado à arte e a importância da leitura, diz que a mesma “é para nós a iniciadora cujas chaves mágicas abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não saberíamos penetrar” (Sobre a leitura. Campinas, SP: Pontes Editores, 2011, p. 39), portanto, ela, leitura, teria papel salutar em nossas existências. Posto isto, meus caros leitores, acrescento-vos nesta última reflexão de 2020 – ano complicadíssimo por diversos fatores, entre eles, a pandemia que grassa o orbe, ceifando a vida de milhares de pessoas e marcando a existência de outros tantos milhões de habitantes – a leitura do romance As cores do entardecer: lembranças de um tempo que não terminou, da escritora estadunidense, Julie Kibler. Essa enunciação, como outras tantas que percorri as páginas no transcorrer deste ano pandêmico, tem como foco o preconceito e o racismo, sejam eles aqui no Brasil ou na América, ou em outras paragens do globo. Desta forma, eu iniciaria as linhas que se seguem fazendo a impertinente [para muitos] pergunta: por que muitos – se não o fossem não seria considerado fenômeno social – sujeitos sociais se acham mais humanos que outros por conta da tonalidade de suas dermes?

Sei que a temática pode ser indigesta para outros tantos que não pensam, não agem desta forma, contudo, o assunto persiste porque se repete em nossos cotidianos, sem que suas consequências possam ser dirimidas com regulamentações a partir das leis. Parece-me, conforme nos reporta o escritor Machado de Assis (1839-1908), antes de alterarem as leis, as pessoas que escolhem seus governantes e representantes no legislativo, deveriam pautar, não só qualificando, mas quantificando mudanças em seus hábitos. Neste ponto de minha narrativa, me recordo da homilia de um amigo religioso que disse ser importante os indivíduos prestarem mais atenção em suas partilhas. O Natal se foi e com ele a prática que todos esperam durante o ano: a ceia natalícia, cujo sentido é senão apenas o de compartilhar o pão, mas o que se tem observado ao longo dos séculos é a troca, passagem, perpetuação da hipocrisia, do racismo fruto da ignorância e da intolerância. Agora é chegada a hora do ritual da despedida de um ano para a chegada de outro e, com ele, os desejos de um futuro alvissareiro, contudo, como isso pode ocorrer, se há uma semana, milhares de brasileiros estavam fortalecendo seus preconceitos em torno de dogmas e crenças caquéticas? Quero neste ponto de meu enredo, recuperar as observações do filósofo grego envolvendo a distinção entre o poeta e o historiador e o faço a partir da enunciação da escritora Julie Kibler.

A obra diz respeito a uma viagem pelo interior dos Estados Unidos, tendo como protagonistas a idosa Isabelle McAllister, que, aos 89 anos, empreende o périplo para participar dum funeral em sua cidade natal. Ela terá a companhia da cabeleireira afro-americana Dorrie Curtis. Durante o traslado, as duas conversam sobre amores passados e presentes. Aquele que pretender se enveredar pela narrativa, mergulhará na vida da idosa que revela a sua história de amor vivida nos anos 30 do século passado. Ela se envolve sentimentalmente com o afro-americano Robert Prewitt, filho da governanta de família de Isabelle, que aspira ingressar no curso de medicina. Lógico que tal relacionamento não seria possível, principalmente numa época em que o preconceito racial era oficializado por leis. Essa narrativa me fez recordar o filme Adivinha quem vem para jantar, tendo como protagonistas o ator negro Sidney Poitier e Katharine Hougthton. Interessante notar que, seja no campo literário ou cinematográfico, os conteúdos das enunciações existem apenas na esfera ficcional. Será? Creio que se, você meu caro leitor, se referenciar em Nietzsche, entenderá que o poeta ficcionaliza o material que encontra no universo concreto, ou seja, na realidade que o circunda. Desta forma, a história contada por Julie Kibler pode ter um quantum de veracidade, na medida que ela informa que a confeccionou a partir de fragmentos de uma paixão que sua avó desenvolveu por um jovem negro, contudo, em virtude de costumes da época, o romance não deslanchou.

A exemplo das duas obras citadas nos parágrafos anteriores, é possível usar a literatura para entender problemas que ainda não foram solucionados na sociedade brasileira, como na norte-americana. No livro Notas de um filho nativo, o romancista e crítico literário estadunidense James Baldwin (1924-1987) trata das questões romanceadas por Kibler a partir das vivências de um de seus familiares. No caso do Brasil, há múltiplos enredos dando conta das violências – físicas e simbólicas – que os descendentes de africanos sofrem desde antes do fim da escravidão. Uma dessas narrativas é o texto do jornalista Fernando Molica: Bandeira negra, amor (2005). Conforme já aventei aqui em diversas ocasiões, as enunciações que compõem o romance dizem respeito às agressões e assassinatos que os pretos estão sujeitos, além de abordagens truculentas advindas do aparelho repressivo de Estado. Já analisei essas questões em trabalho publicado pela Revista Eletrônica do Laboratório de Estudos de Violência e Segurança (LEVS), da Unesp-campus de Marília, mas é sempre bom relembrá-las nesse momento em que muitos desejam aos seus semelhantes um excelente 2021. Outro enredo instigante que enfoca o preconceito racial no Brasil é o do escritor gaúcho Jeferson Tenório: O avesso da pele (2020). Neste texto, o leitor também encontrará ficcionalizado cenas que pululam pelo Brasil afora, como a do músico paraense que morreu após sofrer sevicias e sucessivos espancamentos perpetrados pela polícia militar que desejava arrancar dele depoimentos sobre crimes que não havia praticado. É preciso deixar claro que enquanto era covardemente violentado por representantes fardados do Estado, a filha do músico o esperava na saída da escola. A pergunta que vos faço, meus caros leitores nesta última reflexão de 2020 é: até quando a cor da pele dos sujeitos sociais será motivo para violências, assassinatos e balas perdidas? Até quando as balas perdidas vão encontrar somente corpos pretos? Ao encerrar as leituras dos livros citados nessas admoestações, fiquei com a plena sensação de que não se trata apenas de ficção, mas de uma cruel realidade que os descendentes de africanos, trazidos à força para América, vivenciam ainda nessas duas primeiras décadas do século XXI.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

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