Gilberto Barbosa dos Santos
No campo mitológico, existem miríades de narrativas que podem estar escudadas em histórias concretas ou em intrincadas enunciações que tornam difíceis os ouvintes ou leitores distinguirem entre as que são verídicas e aquelas imagináveis por mentes férteis e narradores impagáveis como Homero em sua Odisseia e a Ilíada. Neste sentido, o universo greco-romano está repleto de historietas que podem ter significados e significantes para o presente, principalmente nas sociedades ocidentais. É de lá que temos a deusa da Justiça, Minerva, que chegou até nós através do famoso “voto de minerva” muito difundido no campo da política, mais especificamente nos legislativos brasileiros naqueles momentos em que se tem o impasse na votação dum determinado projeto. Há casos de vereadores que caíram em desgraça por conta de tais posicionamentos, justamente porque deixaram de votar com o povo e apoio os interesses de prefeitos.
É do mundo antigo que vem um mito importante para a atualidade: Minotauro [monstro metade homem, metade touro, cujo nome próprio significava Astérion]. Para alojá-lo na ilha de Creta foram chamados o arquiteto Dédalo e o seu filho Ícaro que projetaram, por determinação do rei Minos, o labirinto para onde foi conduzida a figura mítica daquela época. Enquanto esta era mantida no cativeiro, lhe ofereciam regularmente jovens que eram devorados por ele. Tamanha crueldade precisava chegar ao fim e a morte da figura tenebrosa veio através do herói ateniense Teseu que recebeu ajuda de sua amada Ariadne – filha do rei Mino. Ela lhe dá um novelo de lã para marcar o caminho que o tiraria do labirinto.
Asterion, Teseu e Ariadne existiram? Os arqueólogos encontraram vestígios do palácio do rei Minos, mas nada que possa indicar haver a presença de Ícaro [Vikare em etrusgo] que construiu, junto com seu pai, asas para saírem da prisão. Conseguiram o feito, todavia, Dédalo o advertiu para não voar próximo ao sol, evitando assim derreter a indumentária, todavia, Ícaro, encantado pela beleza da estrela da manhã, quis ficar mais próximo do astro rei, recebendo como prêmio pela teimosia a morte. Mas o que tem esses pequenos fragmentos mitológicos com o presente daqueles que me leem? Parece-me que essa seria a interpelação para aqueles que ousaram chegar até esse ponto de minha enunciação crítica. Acredito que não tem vínculo ou conexão de sentido algum, entretanto quando se começa a analisar o mundo da política, é possível compreendê-lo como um labirinto e a morte do Minotauro significa a chegada do poder e desposar a Ariadne que encanta todos aqueles que se enveredam pelo seu pantanoso universo: a vaidade e a presunção. Esses dois substantivos femininos, quando se deslocam para o campo da adjetivação respaldados pelas práticas diárias – nem sempre visível, pois a verdade pode estar encoberta pela imagem refletida no lago, seguindo exemplo de outro mito grego [aquele em que o sujeito se apaixona pela própria imagem cultuando a ideia da primeira pessoa: eu] -, provocam severos estragos. Todos sabem, em maior ou menor grau de quem se trata: Narciso que deu origem a expressão “narcisismo”.
É muito comum encontrar pessoas dessa envergadura no mundo da política, principalmente em época eleitoral. Contudo, existem uns que não avaliam as consequências de suas ações e verborragias que acabam se transformando no transcorrer da história – sem muita extensão na dimensão temporal – em problemas e, aquilo que antes era dado como certo no hoje, deixou de sê-lo num amanhã não distante e as justificativas são sempre as mesmas, entretanto, ao entender o que foi dito no recente pretérito, o cidadão compreende que no mundo da política, Maquiavel e seu livro O príncipe são célebres em pedir ao governante prudência, pois quando se administra uma paroquia é por vontade do povo, o verdadeiro dono do poder, no entanto, é muito comum nessa seara, os representantes se encantarem com as próprias imagens que refletem nos mais diversos lagos e espelhos da sociedade, e com os folguedos em épocas festivas. O escritor carioca, Machado de Assis (1839-1908), tem um significativo conto intitulado O espelho, objeto que reflete não o real, mas o que deveria ser, porém de forma distorcida, entretanto, é justamente nessa inversão do real que se encontra o verdadeiro sentido da imagem.
Posto isto e usando alegoricamente a enunciação machadiana, como o espelho do político o reflete? E se acrescentarmos a essa reflexão o enredo do romance O retrato de Dorian Gray – prestem atenção no primeiro nome da personagem -, escrito no século XIX pelo irlandês Oscar Wilde (1854-1900), é possível dizer que a imagem refletida é aquela que apodrece, envelhece enquanto ludibria o povo para na eleição seguinte surgir outra? Duas interpelações complexas para que os meus leitores reflitam antes de respondê-las. Claro que minhas observações não têm como escopo persuadir ninguém a pensar assim ou de outra forma, até porque a escritora Jane Austen (1775-1817) já escreveu um importante romance intitulado Persuasão: quem ainda não leu, vale a pena passar o final de semana apreciando aquela enunciação britânica, cujo enfoque é a nobreza inglesa do século XVIII.
No entanto, se o foco deixar o âmbito político e passar ao do eleitorado, como é que fica essa questão do espelho e a imagem refletiva ao contrário? Claro que ao pegar carona na chave machadiana e não narcísica, ver-se-á que a farda de auferes do cidadão-votante esconde muitas expectativas e um quantum significativo de frustrações e promessas não cumpridas, o que faz com que ele vote não com a razão, mas sobretudo a partir do ressentimento e de projetos não realizáveis, principalmente no campo da materialidade e da exterioridade, ou melhor, do ter e das posses, pois como dizia Friedrich Nietzsche (1844-1900), o mundo só pode ser entendido como fenômeno estético, ou seja, de como se é visto e como se enxerga o mundo concreto. Normalmente quando se pensa o problema político com o campo emocional ativado, a tendência é sempre optar por ações totalitárias que culminam com Estados e governos autocráticos, cujo escopo é silenciar os movimentos democráticos com a desculpa de sepultar ideologias à esquerda, todavia, tenta-se sufocar as ideias, segundo as quais, a democracia só pode existir porque aqueles que pensavam diferente, interpretavam o mundo de forma contrária à que os poderosos disseminavam, assim levantaram e brigaram por mais igualdade, leis acima dos interesses pessoais e que todos pudessem ter participação ativa nas decisões da vida política da sociedade. De certa forma, os gregos já tinham essa prática, talvez por isso, para Castro Alves (1847-1871) a praça sempre foi do povo, mesmo que este ainda não soubesse ocupá-la pela ausência de determinados direitos que colocassem em funcionamento a cidadania.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor do ensino superior e médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.