O Brasil de Alencar e Ailton Krenak

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Tinha dois temas em pauta para as linhas que seguem nesta manhã de quinta-feira: a primeira diz respeito aos imbróglios relativos à desapropriação de uma área rural em Penápolis, por estar às margens de uma rodovia, é possuidora de grande interesse comercial – deixarei essa temática para outro momento. O segundo tema faz alusão ao brutal assassinato de uma mulher na noite do último domingo: sem querer aplicar sentença alguma, até porque as leis existem e há tribunais de Justiça para fazê-la ser cumprida, mas pelo que se sabe tudo indica feminicídio. Estranho comportamento humano que não aceita ver seus interesses contrariados e acaba usando a força, a violência e o assassinato para fazer valer seus valores distorcidos, sem princípios éticos e morais. Assim como a temática anterior, deixarei está também para outra ocasião. Todavia, adentrarei em um universo que poderá fornecer subsídios para se entender uma Nação em que o liberalismo clássico ainda não “deu as caras por aqui”, como se diz no jargão popular, tendo em vista a manutenção de uma prática estamental que pode estar atrelada às 25 facadas que Jaqueline Barboza de Oliveira, recebeu na noite de domingo daquele que dizia amá-la. Pergunto-te meu caro leitor, que crime a vítima teria cometido para receber uma punição tão severa dessas, isto é, a pena de morte aplicada por um ser quase que social?

Se não vou abordar o econômico e nem o violento na presente reflexão, então do que ocuparei o tempo de vocês que me leem semanalmente aqui nas páginas deste jornal? De literatura, conforme o título já tenta esmiuçar, pois além do nome da Nação, há de dois escritores, subsumindo outros tantos: desde o período romântico ao, quem sabe, pré-modernismo: José Martiniano de Alencar (1829-1877) e Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922). Entre os dois, há duas correntes: o realismo, cuja maior estrela é Machado de Assis (1839-1908) e o naturalismo – quando penso nessa corrente literária o primeiro nome que surge é o de Aluísio Azevedo (1857-1913) e o seu O cortiço, romance inspirado num amontoado de quartos e casebres que existia na região central do Rio de Janeiro: o famoso cortiço Cabeça de porco. Posto isto, meus caros leitores, confesso-vos que é árdua a tarefa de um educador-professor despertar o interesse dos estudantes para os clássicos da literatura brasileira. Eu, do meu lado, perguntaria, caso fosse aluno secundarista e me indicassem um desses romances: “professor, por que eu tenho que ler esses livros?” Claro que para aqueles que estão no mundo da docência, sempre escutam esse tipo de interpelação, por isso, coloco-me na dupla condição: educador e aluno, e aí me fica a questão: o que tem no romance O cortiço que faz com que um discente se encante com a história de Rita Baiana e os demais encortiçados, além do triste fim de Bertoleza? E o que dizer, por exemplo, de Esaú e Jacó, de Machado de Assis ou ainda Dom Casmurro? E se o título for Clara dos Anjos, de Lima Barreto? Parece-me que a coisa fica mais complexa ainda quando o romance for Iracema, de José de Alencar.

Não tenho a pretensão aqui neste espaço, meu caro leitor, de enfocar a profundidade que existe nesses clássicos citados no parágrafo anterior, exceto apenas que todos dizem um quantum sobre o país que tenta ser moderno, contudo, ainda está preso às ordens estamentais. Então, todos esses romances têm vital importância para o brasileiro e sobretudo ao estudante secundarista que deve, auxiliado pelos professores, enfrentar alguns hermetismos presentes, por exemplo, em Iracema, Dom Casmurro e Clara dos Anjos, além de O cortiço e de quebra Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus (1914-1977). Lembrando: os alunos encontram todas essas narrativas nas bibliotecas das escolas, ou melhor, nas salas de leituras de suas respectivas unidades escolares, bem como nas bibliotecas municipais [Penápolis tem duas]; também é possível baixar gratuitamente no site Domínio Público – portanto, não tem como apresentar desculpas pela falta de acesso aos respeitos livros e enunciações. Posto isto, começo o meu périplo literário pelo clássico Iracema. Lá, além da descrição do que pode ser o paraíso terrestre em terras cearenses, não o que nos apresentou o escritor dominicano Tommaso Campanella (1568-1639) em seu livro Cidade do Sol, mas creio que bem próximo do que indicou o historiador brasileiro Sergio Buarque de Holanda (1902-1982) em sua obra Visão do paraíso. Mas, por outro lado, se o leitor quiser ir além das descrições geográficas e morfológicas, encontrará o amor entre o lisboeta Martim e a nativa Iracema. Belo romance, tema de um amor interétnico, não fosse a tentativa de se impor, via enredo ficcional, a superioridade do branco sobre o indígena e do homem estar acima da mulher. A pergunta que se faz é: por que foi Iracema a deixar a sua tribo para se juntar ao mundo de Martim? A segunda é: será que se fosse o contrário, ou seja, o homem a se integrar ao universo indígena, o filho do casal ficaria como desterrado, sem local e etnia que o definisse?

Talvez as páginas que se seguem na enunciação alencariana, para além do período romântico, possa apresentar ao leitor interessado subsídios para se pensar o patriarcalismo à brasileira, o etnocentrismo que grassa hoje nas paragens deste país. Será que um Martim pós-moderno iria até a tribo de uma Iracema emancipada e não tutelada por um estado-coronelístico como o brasileiro, não ficaria no final do enredo, sem saber para onde ir? Interessante, ao ler Iracema, prestar atenção no jogo textual que pode fornecer elementos para entender porque a questão ambiental hoje é tratada com descaso, conforme bem retratou Ailton Krenak, em seu pequeno livro, Ideias para adiar o fim do mundo. “O que é feito de nossos rios, nossas florestas, nossas paisagens? Nós ficamos tão perturbados com o desarranjo regional que vivemos, ficamos tão fora do sério com a falta de perspectiva política, que não conseguimos nos erguer e respirar, ver o que importa mesmo para as pessoas, os coletivos e as comunidades nas suas ecologias. Para citar o Boaventura de Sousa Santos [professor da Universidade de Coimbra], a ecologia dos saberes deveria também integrar nossa experiência cotidiana, inspirar nossas escolhas sobre o lugar em que queremos viver, nossa experiência cotidiana, inspirar nossas escolhas sobre o lugar em que queremos viver, nossa experiência como comunidade” (SP: Cia das Letras, 2019, p. 23-24).

Para não estragar a viagem dos possíveis leitores de Iracema, ou até mesmo uma releitura para aqueles que já percorreram as páginas desse excelente clássico do romantismo brasileiro, não anteciparei minha interpretação dos fatos ali contados por José de Alencar, mas apenas antecipar que, para o escritor cearense, em sua tentativa de externar sua visão de mundo, segundo a qual,  o elemento indígena deveria ser tutelado e tornar-se civilizado a partir da interação com o branco, desde que este estivesse no comando da situação, da relação sentimental. Portanto, o enredo fornece elementos para se pensar a questão ambiental no presente e a forma como o indivíduo lida com a natureza que o cerca. Claro que, conforme o autor de Ideias para adiar o fim do mundo informa, se faz necessário eliminar a ideia de que o humano é dono da Terra em detrimento da abordagem em que o homem é parte integrante do ecossistema formador do orbe. No pensamento escudado na ideia de propriedade, há uma dissociação entre as duas unidades que compõem uma das partes principais do existir: homem e natureza. “A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo” (Ailton Krenak. SP: Cia das Letras, 2019, p. 22-23).

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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