O Brasil contra o Moderno *

Alessandra Maia**

 

 

Mesmo para os que ainda hesitam em constatar, o Brasil vive hoje um momento desequilibrado. Aos olhos estupefatos do mundo testemunhamos uma contratura civilizatória, a ameaça e ataque desvelado às garantias constitucionais elementares das minorias. Em nome de uma cruzada “por um Brasil acima de tudo”, leis são descumpridas, são banalizados milícia, tráfico de drogas, morte, nepotismo, filhotismo, perseguição política, ofensas, nomeações de amigos e idólatras. Tudo o que leva o país a andar na contramão dos valores democráticos que foram conquistados e ampliados nas democracias constitucionais após a Segunda Guerra Mundial (onde antepassados lutaram, inclusive). Tal é o fosso, que muitos, apressadamente, negam o passado honroso daqueles brasileiros e brasileiras que lutaram contra o nazismo e o fascismo. A pergunta que não cessa – até que ponto se transigirá sobre direitos?

O Brasil passou a votar agora na ONU junto com países como a Arábia Saudita no tema de direitos das mulheres e sobre gênero, por exemplo. Releva-se o fato de que a Arábia Saudita é a mesma que proibiu o voto das mulheres até 2015. Relega-se a história de que em 3 de maio de 1933, na eleição para a Assembleia Nacional Constituinte, a mulher brasileira, pela primeira vez, em âmbito nacional, votou e foi votada. A retração que se assiste em relação à luta por igualdade civil e política que durou mais de 100 anos, visto que as discussões parlamentares iniciais sobre o tema datam ainda da Primeira República, que impediu tanto as mulheres quanto a maior parte da população da época de exercer o direito de votar[1].

Por outro lado, é público e notório que o governo Jair Bolsonaro é pior avaliado na região Nordeste do país, onde 40% o consideram “ruim ou péssimo”, segundo dados da pesquisa Ibope encomendada pela CNI (Confederação Nacional da Indústria), de abril deste ano.[2]Tal informação, contudo, está longe de ser descolada da história da luta das mulheres e outros grupos pela liberdade e dignidade civil e política no país, em especial no norte e nordeste. Regiões dos destemidos povos Tupinambás a Zumbi dos Palmares, de Lampião e Maria Bonita, dos que se opuseram em Canudos, na Balaiada, na Cabanagem, na resistência de Chico Mendes, nas tradições da festa junina aos capoeiras… As referências e a força da história de resistência dos muitos povos brasileiros ao autoritarismo e dominação são extensas. Nesse sentido, não pode gerar espanto tampouco o fato do estado pioneiro no reconhecimento do voto feminino ser o Rio Grande do Norte. A Lei Eleitoral do Estado de 1927 determinou em seu artigo 17: “No Rio Grande do Norte, poderão votar e ser votados, sem distinção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei”[3]. Com essa norma, mulheres das cidades de Natal, Mossoró, Açari e Apodi alistaram-se como eleitoras em 1928. Foi também no Rio Grande do Norte onde foi eleita a primeira prefeita do Brasil, em 1929, Alzira Soriano elegeu-se na cidade de Lages.

Vale relembrar também, que apesar da violência contra a mulher vir alcançando recordes a cada ano[4], uma das conquistas recentes mais importantes contra a violência doméstica no país foi justamente a Lei Maria da Penha, conquistada a partir da história de injustiça e luta de uma farmacêutica cearense, Maria da Penha Maia Fernandes. O caso emblemático de 23 anos de violência doméstica imposta pelo ex-marido, que tentou matá-la por duas vezes, sendo a primeira em 1983, quando deu um tiro em Maria da Penha enquanto ela dormia, deixando-a paraplégica. Após a segunda tentativa de assassinato, quando foi vítima de eletrocussão e afogamento, Maria da Penha conseguiu denunciar seu agressor e começou o processo que tardou quase 20 anos para ser finalizado.

No entanto, em nome de “um Brasil acima de tudo”, muitos trabalham todo dia para esquecer – e fazer esquecer – essas conquistas, negligenciar a violência crescente nas cidades, por questões de gênero, pela cor da pele, por todos que se encontram perdidos no meio do tiroteio e não tem dinheiro suficiente para tentar se proteger, nem são “amigos dos amigos” do presidente. Assassinato é assassinato, e é duas vezes pior quando é cometido pelo Estado, porque é dele que deve vir o exemplo. Ao invés de relembrar a história, muitos se esforçam em distorcê-la, em fazer heróis os algozes. Nesse processo onde “fake news” desacreditam a ciência e as pesquisas, parece que ao invés do raciocínio razoável muita gente prefere apenas creditar ao sentimento de ódio e suas aversões pessoais o futuro do nosso país. O raciocínio lógico é ignorado no mesmo país que enfrenta enormes lacunas na expansão da educação e tecnologia, verdadeiro projeto político que traz em seu bojo a negação da política, “o poder acima de tudo”, a solução autoritária. Segundo pesquisa recente, ser professor no Brasil hoje é menos valorizado na sociedade do que em todos os outros 35 países pesquisados, em estudo realizado pela Varkey Foundation, que acompanhou os resultados dos testes PISA e nos traz em último lugar na lista.[5] O resultado é isso que aí está.

Todo o pouco caso em relação às mulheres, à educação e às minorias hoje no Brasil é um forte sinal de alerta. Tais sinais não são isolados, mas interseccionais para a manutenção da pobreza e da violência endêmicas que o país enfrenta. Uma grande estudiosa da igualdade certa vez observou “nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”.[6]

A pesquisa, a história e a teoria política podem nos ajudar nesse momento, a sociologia também. Quando os acontecimentos do mundo da vida questionam a árdua conquista da descentralização do poder, transformam o país numa “República dos Laranjas”, e afirmam que no “Brasil acima de tudo, os fins justificam os meios”, os governantes entram na contramão do que predica tudo o que já se estudou a respeito desses temas, ao longo de séculos. Não tem como dar certo.

Haja vista o tamanho do problema, propõe-se então, a breve recuperação do que nos ensina o pensamento de Nicolau Maquiavel sobre a liberdade e suas relações com o direito, e o poder. Em que se pese aos desavisados, Maquiavel esteve longe de ser feminista, mas decerto combateu o dogmatismo e obscurantismo como poucos. Segundo observa Pitkin (1999), há uma dualidade no pensamento do autor que permite, ao mesmo tempo, identificar como a discussão sobre o uso da força e a liberdade política podem promover, ou, o que a presente análise recomenda, prevenir a sociedade sobre os riscos do autoritarismo.

O surgimento do Estado Moderno, tal qual o conhecemos, teve em Maquiavel seu legítimo e reconhecido sistematizador, como ensina o artigo memorável de Viveiros de Castro e Benzaquen de Araújo (1977), “Romeu e Julieta e a origem do Estado”. O livro “O Príncipe” trazia um discurso radical à sua época[7], pois abordava a dimensão do político enquanto um domínio que possui uma lógica independente, autônoma, sem qualquer vinculação ao cimento tradicional da ordem antiga. A religião, naquela antiga ordem do século dezesseis, caracterizava a concepção holista de mundo (“de algo acima de tudo”), que a tudo encerrava. O texto é primoroso, pois compara as criações de Maquiavel e Shakespeare, “O Príncipe” e “Romeu e Julieta”, enquanto marcos da vida moderna que ora se iniciava.

Sim, talvez seja mais fácil ao falar de amor, afeto ou sentimento identificar o quanto é significativo rechaçar por completo a ideia de que algo possa recomendar “um poder acima de tudo” entre os seres humanos, como algo desejável nas suas relações sociais. No caso do famoso romance, o mundo moderno se apresentava na dimensão do amor, e das relações interindividuais que não estavam mais submetidas à uma lógica una, onde a família define o casamento, o afeto, a unidade econômica e política na sociedade. Ao mesmo tempo em que o amor exigia uma separação do indivíduo em relação às preferências da família, tal exigência (expressa no sacrifício dos amantes) retirava da família a autoridade política, que passava a se concentrar nas mãos do príncipe de Verona, que mediaria a situação. A lógica cósmica que entra em oposição à lógica social, na tragédia de Shakespeare, oferece o mesmo panorama de ruptura de um todo e diferenciação de domínios que “O Príncipe” sistematiza: a separação entre um Estado submetido a uma racionalidade própria, e uma sociedade civil que, em última análise, pode ser considerada como um conjunto de indivíduos autônomos, uma societas não mais inserida em uma cosmologia pré e supra individual.

Quentin Skinner, também conhecido estudioso de Maquiavel, ressalta a importância do humanismo para a liberdade, e afirma que as maiores obras da doutrina política republicana do século XVI estiveram mais próximas do molde humanista do que do escolástico (Skinner, 1996, p. 172). O século que se seguiu à paz de Lodi, em 1454, presenciou o triunfo definitivo do governo dos príncipes por quase toda a Itália. Foi justamente no crepúsculo das cidades-Estado, que a doutrina política republicana gerou suas contribuições mais originais. A discussão iniciada pelos chamados “humanistas cívicos” girava em torno da concepção de liberdade política[8].

Ainda segundo Skinner, o chanceler florentino, em “O Príncipe”, apesar das menções à República como o lugar mais difícil de ser conquistado, onde o desejo de liberdade nunca abandona os seus cidadãos, manteve o aconselhamento principal a girar em torno da segurança. A prioridade é “conservar seu estado” e apenas após esse momento as metas da honra, glória e posteridade poderiam ser alcançadas. Nesse sentido, talvez uma das melhores contribuições do autor seja, exatamente, o seu esforço em demonstrar o caráter inconstante e volátil do poder político, que as leis e instituições políticas precisam moderar.

Justo pelos imprevistos da fortuna, de modo inverso ao que fez no manual sobre os príncipes, ao estudar “Os Discursos”, a ênfase fundamental repousa sobre a liberdade. É o ideal de liberdade, e não apenas a segurança, que Maquiavel almeja que seja alçado acima de todas as demais considerações, inclusive as ditadas pela moralidade tradicional convencional. A análise dos discursos ajuda a perceber o interesse de Maquiavel em estudar o “modo de ser” – o modo de Roma conseguir libertar-se de seus reis – e expandir a liberdade republicana e seus domínios, seus erros e acertos. Sim, é mais longevo, duradouro e potencialmente próspero não ser dominado por um “salvador da pátria”. Skinner considera Maquiavel um entusiasta do governo popular, presente na ideia da liberdade como desejo de não ser oprimido, na busca do autogoverno, de viver segundo a tradição da liberdade, segundo suas próprias leis. É interessante que até mesmo em “O Príncipe”, é possível destacar a exaltação da liberdade como força, como desejo de não ser oprimido, como o motor que faz a população manter-se firme contra ações hostis.[9]

Por outro lado, e por incrível que possa parecer, o abuso do poder também foi estudado por Maquiavel. Ainda que um príncipe tirano pudesse usar da força desmedida, o abuso da força fatalmente o levaria à ruína – e jamais à glória – haja vista ninguém mais lembrar quem seria Agátocles Siciliano. Prudência, flexibilidade e experiência são chaves fundamentais para a virtù, e para o emprego da força pelo governo, que deve estar atento ao apoio popular para as suas ações, de acordo com as leis, caso opte por garantir a liberdade da República. Do mesmo modo, um dos maiores perigos e ameaças à liberdade para Maquiavel reside justo na busca desmedida pela riqueza. Curiosamente, a primeira formulação sobre a importância de tropas militares do próprio Estado Moderno adveio dessa formulação. Confiar a defesa da cidade a tropas mercenárias era um erro gravíssimo, pois a lógica das milícias mercenárias sempre será obediente aqueles que pagam mais, e não a liberdade da República.

O abuso do poder também gerou ameaças em Roma: aqueles que governavam tendiam a propor leis que aumentassem o seu próprio poder, ao invés de trazer maiores garantias de liberdade para a população. Tais graves ameaças para a população teriam como principal atalho os momentos em que se excluía o povo de um papel ativo nos negócios do governo. E não menos importante, sobre a corrupção, Maquiavel ressalta que esta cresce na medida em que a desigualdade aumenta numa cidade, e pode até mesmo torná-la incapaz de ser livre. Isto ocorre sempre que em uma cidade, grupos de oligarcas adquirem cada vez mais controle sobre as instituições políticas, e impedem os demais cidadãos de colaborar nos negócios políticos. Maquiavel considera que a sabedoria política reside justamente em estudar as Repúblicas do passado, tirar lições práticas do estudo da história, e ampliar o entendimento sobre a relação dos seres humanos no tempo e com o tempo.

Finalmente, um dos mais intensos ensinamentos de Maquiavel é que na política, a certeza é a maior inimiga da prudência, e o caminho mais rápido para o fracasso. A dúvida sempre foi amiga íntima do raciocínio lógico, da estratégia, do caminho para a linguagem política e para o diálogo. Até mesmo no século XVI, não possuía validade ou facticidade afirmar que se alcança a segurança contra a corrupção ao adotar a lógica de que “os fins justificam os meios”, ou de que qualquer poder possa estar “acima de tudo”. Oxalá o flertar com o autoritarismo e as respostas fáceis diminua, pois a descentralização do poder político é vetor fundamental para a existência digna e livre, seja enquanto conquista, seja enquanto horizonte normativo possível para um mundo moderno. Oxalá possamos voltar a ter um país moderno como horizonte de expectativas.

Notas:

[1] Veja-se o povo excluído da Primeira República – 27, 4 milhões de pessoas, 89,5% da população até 1930, segundo CARVALHO, 2017, p.14.

[2] Segundo informa MAZIEIRO, G. Ibope: avaliação do governo Bolsonaro é pior no Nordeste. UOL, Brasília, 24/04/2019.

Disponível em:  https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/04/24/ibope-avaliacao-do-governo-bolsonaro-e-pior-no-nordeste.htm?cmpid=copiaecola Consulta em 16/07/2019.

[3] Informações disponíveis no site do TSE, ver http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2013/Marco/ha-80-anos-mulheres-conquistaram-o-direito-de-votar-e-ser-votadas

[4] Para informações sobre como as mulheres estão sendo atacadas bem perto de você, clique em Mapa da Violência de Gênero (http://www.generonumero.media/mapa-da-violencia-de-genero-mulheres-67-agressao-fisica/ ), onde se pode verificar, em todo o país, que mulheres são quase 67% das vítimas de agressão física no Brasil, segundo informações de 11 de julho de 2019.

[5] Ver VITORINO, F. “Brasil cai para último lugar no ranking de status do professor. Menos de 1 em cada dez brasileiros acha que professor é respeitado em sala de aula”, G1, 08/11/2018, Disponível em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2018/11/08/brasil-cai-para-ultimo-lugar-no-ranking-de-status-do-professor.ghtml  Acesso em 16/07/2019.

[6] “Mais comme elle me le rappelait souvent, “rien n’est définitivement acquis. Il suffira d’une crise politique, économique ou religieuse pour que les droits des femmes soient remis en question. Votre vie durant, vous devrez rester vigilantes” Ver MONTEIL, Claudine. Simone de Beauvoir et le mouvement féministe français et international.  Lendemains-Etudes comparées sur la France, 2008, p. 39. Disponível em:  periodicals.narr.de

[7] A inovação do pensamento de Maquiavel para seu tempo é o ponto mais destacado por POCOCK, 1975.

[8] O estudo de referência sobre o tema é BARON, 1966.

[9] Vide passagens dos capítulos V, X e XV de “O Príncipe”, e as formulações sobre a República, as cidades alemãs, seus depósitos públicos e a capacidade que possuíam de mobilizar seus cidadãos.

Referências bibliográficas:

BARON, H. The Crisis of the Early Italian Renaissance. Princeton: Princeton University Press, 1966.

BENZAQUEN DE ARAÚJO, R. & VIVEIROS DE CASTRO, E. “Romeu e Julieta e a Origem do Estado”. In: VELHO, G. Arte e Sociedade: ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1977, p. 130-169.

CARVALHO, J. Pecado original da república: debates, personagens e eventos para compreender o Brasil. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017.

PITKIN, H. Fortune is a Woman. Chicago: University of Chicago Press, 1999.

MAQUIAVEL, N. O Príncipe. Tradução Maria Goldwasser; revisão da trad. Zelia Cardoso. São Paulo: Martins Fontes, 3ª ed, 2004. (Coleção obras de Maquiavel)

___. Discursos sobre a Primeira Década de Tito Lívio. Revisão da trad. Patrícia Aranovich. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

MONTEIL, Claudine. “Simone de Beauvoir et le mouvement féministe français et international” In: Dossier Lendemains-Etudes comparées sur la France, 2008.

POCOCK, J. The Machiavellian Moment. Princeton: Princeton University Press, 1975.

SHAKESPEARE, W. Romeu e Julieta. Tradução Onestaldo de Pennafort. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

SKINNER, Q. A fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

 

* Sou grata à minha filha, Nathalia Maia Terra de Faria, pela leitura e comentários sobre o presente artigo. 

 

** Alessandra Maia é Socióloga formada na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, mestre e doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e professora na mesma instituição. Colabora com a Revista Escuta.

 

*** Crédito da imagem: ANTROPOFAGIA . In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra1634/antropofagia&gt;. Acesso em: 16 de Jul. 2019. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7

 

Disponível no site https://revistaescuta.wordpress.com/2019/07/18/o-brasil-contra-o-moderno/?fbclid=IwAR0VFBLTo3uysrXHbLk4cTNhGCes-rlH67pKgjAUwGEL4Uqz7xzkNMD1f_o (acessado no dia 18/07/2019 às 13h21)

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