Lodos, lamaçais e outros pântanos

Gilberto Barbosa dos Santos

 

O diálogo que pretendo estabelecer hoje com meus leitores – se é que eu ainda os tenha: espero que sim – partirá de três abordagens que creio sejam importantes para se pensar questões alusivas, não somente ao tempo que se dissolverá logo após o passar dos olhos sobre as linhas que se seguem, como também as esferas econômicas, sociais e emocionais: todas interligadas de alguma forma, pois como disse certa vez o pensador francês Edgar Morin, o homem tem medo de deixar de existir, mas permanecendo vivo, acaba construindo para si muitas patologias, entre elas, diversas neuroses. Tendo essa pequena abordagem como premissa, enfoco o primeiro componente que nos auxiliará – eu e você caro leitor – a percorrer as ruas dessa e de outras cidades. “Cheguei ao ponto de conversar com a escova de dentes pousada na pia e os chinelos debaixo da cama. Os objetos entendiam, eles pareciam sentir a falta também, não é mesmo? Fomos todos deixados para trás” (Fabiane Guimarães. Apague a luz se for chorar. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2021, p. 23).

O que me diz meu caro leitor sobre esse excerto? Parece-nos um argumento tosco, alegórico, para não dizer completamente sem eira nem beira, como se diz no jargão popular, entretanto, quem nunca conversou com a imagem refletida no espelho do banheiro ou de um móvel instalado no quarto? Lógico que a resposta será sempre afirmativa se a pessoa for, sobretudo, sincera consigo mesma, inclusive olhando com a devida acuidade a frase em que a madrasta no conto de fadas Branca de Neve e os sete anões, pergunta ao seu objeto de adorno: “espelho, espelho meu…”. É interessante nos determos, eu e tu, no pronome possessivo “meu”, pois ele consubstancia muitas coisas que o ser humano contemporâneo, pós-moderno, pós-humano e, quiçá daqui um ano, pós-pandêmico. Por que o homem em si vive em plena crise existencial, precisando cada vez mais ter objetos para chamar de “seu”? Outra significativa interpelação: por que está, cada vez mais, complicado se relacionar com o outro que busca incessantemente não se parecer com o seu semelhante, contudo, lhe inveja a autonomia e a liberdade sobre o mundo material? Perguntando de outra forma: por que as pessoas se distanciam cada vez mais, porém, precisam urgentemente do convívio social? Responder a essa inquirição equivale a recordar os motivos porque o isolamento social é tão complicado de ser observado, mesmo tendo morrido mais de 570 mil brasileiros desde que a pandemia teve início no começo de 2020. Se me for possível, voltarei a essa temática em tempo aprazível, meus caros leitores.

O segundo excerto está, de certa forma, interligado ao primeiro e consta no artigo A ditadura do algoritmo, escrito por Edson S. Moraes e publicado no jornal Folha de S. Paulo em sua edição do último domingo, 22 de agosto. Destaco aqui dois momentos: no primeiro, o autor diz: “que triste estar num mundo em que tudo é feito para que se leia, ouça ou veja somente aquilo que queremos ler, ouvir e ver. A ausência do contraditório, da discrepância e do discordante infantiliza qualquer relação e impede que se mantenha a visão sobre o mundo e sobre a vida em evolução contínua. Caso vivesse hoje e estivesse pendurado numa rede social, Raul Seixas [1945-1989] não conseguiria ser uma metamorfose ambulante. O algoritmo não permitiria”. No outro: “essa ditadura do ‘soberano algoritmo’ chega a ser até mais cruel que a ditadura política, pois é camuflada por imagens agradáveis, frases de incentivo e áudios que tornam o pensamento dos que consomem tudo isso alinhados aos anseios daqueles que criam armadilhas que levam a uma interpretação equivocada do mundo, conduzindo a decisões irracionais que atendam às expectativas do ‘algoz algoritmo’”.

Num rápido olhar, podemos detectar que as pessoas não estão só, como poderíamos, eu e você leitor amigo, supor, evidenciando a crise de convivência humana, contudo, a existência só ocorre quando há anuência entre ideias, ou melhor, concordância consubstanciada na ausência de reflexão sobre o mundo em si e o que o indivíduo faz nesse universo repleto de mercadoria, chegando ao ponto dele, sujeito social, também ser um produto que reflete sobre a sua própria vida enquanto objeto a ser consumido pelos seus pares. Como escapar desse alçapão proporcionado pela tecnologia? Somente através da educação como propõe Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) em seus trabalhos, entre eles, O contrato social? Interessante interpelação, meus caros leitores, quando se soma a ela a outra inquietação: qual educação? Uma que possa emancipar o sujeito ou colocá-lo num mercado de trabalho que mais se parece a um abatedouro? Para se tornar um ser livre, a pessoa precisa ter consciência de si e do outro, mas não um que lhe diga amém, como o espelho da madrasta no conto dedicado à Branca de Neve. Neste sentido, é que posso afiançar vos, que as observações feitas por Morin e apresentadas de forma sucinta no início deste texto, tem fundamento. Os indivíduos não querem, não desejam ser questionados em suas verdades fantasmagóricas, a exemplo do que aconteceu durante a Idade Média, mais especificamente nos tempos da Inquisição.

Desta forma, da maneira como as questões sociais são apresentadas, é como se o homem em si fosse culpado pelo seu próprio fracasso emocional, econômico e humano, contudo, é preciso analisar qual força o atrai para o próprio cadafalso. Essa percepção da realidade que o cerca, faz com que o indivíduo se torne um descrente de tudo que o circunda, o tornando presa fácil de movimentos messiânicos e populistas, conforme o cientista social Sergio Abranches nos apresenta em seu livro O tempo dos governantes incidentais (São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 71-72). “Várias democracias na América e na Europa estão sob a ameaça dos populistas. Diferentemente do velho populismo latino-americano, a vertente que assalta as democracias mais maduras vem da direita nacionalista. O populismo, sob qualquer de suas formas, nasce da insatisfação e do ressentimento. O terreno no qual prosperam as lideranças populistas é marcado pela frustração das oportunidades, pela mobilidade regressiva, particularmente nas classes médias, e pela desigualdade crescente. Elas exploram o sentimento de abandono ou destituição. Não são sentimentos gratuitos. Estão ancorados nas falhas sistêmicas dos mercados e das democracias. As formas tradicionais de produção e circulação de mercadorias foram alteradas pela globalização, pelas mudanças tecnológicas, pelo desenvolvimento de novas modalidades de financiamento no mercado financeiro e pela instantaneidade da economia digitalizada. Tudo isso gera desigualdade e desemprego. Os novos padrões, alguns já emergentes, ainda não são capazes de gerar os empregos, a renda e o bem-estar necessários para compensar essas perdas e atender às demandas da maioria. O que piora o quadro é que as democracias estão dominadas por oligarquias políticas e econômicas que não representam mais amplas parcelas da sociedade. As camadas desrepresentadas emergiram fora das jurisdições cobertas pelos partidos, sindicatos e grupos de interesses organizados e encontram-se desamparadas. São rejeitadas pelo mercado de trabalho, não têm representação política e estão fora do alcance das redes de proteção social do Estado”. Nesse trecho fica evidente porque o lodo social cresce por várias cercanias brasileiras, formando lamaçais e outros pântanos em que a categoria política continua existindo, desde que distribua à população migalhas para mantê-los alienados e a promessa de um vir a ser perfeito.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

 

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