José de Alencar e o Brasil Oitocentista

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Começo o texto de hoje usando epígrafe que se encontra em meu livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis (https://www.nea-edicoes.com/catalog/search). O excerto foi retirado do trabalho do docente de Sociologia do IFCH-UNICAMP, Marcelo Ridenti – meu professor e amigo dos tempos de graduação em Ciências Sociais – O fantasma da revolução brasileira. O trecho consta no posfácio da segunda edição de sua obra, portanto, funcionando como uma espécie de observações sobre o conteúdo da primeira edição. Nele, Ridenti diz que “conhecer o passado é indispensável para pensar e atuar no presente, mas sem a ilusão de que isso necessariamente envolva escolhas melhores”. Feitas as explicações iniciais, me enveredarei pelo sentido dado ao título do artigo desta manhã, ou seja, tentar ver o Brasil do século XIX pelas lentes do escritor e político brasileiro, José Martiniano de Alencar (1829-1877), que nos legou significativos clássicos do romantismo enquanto escola literária, entre eles, Iracema, O Guarani, Lucíola, O tronco do ipê e Til, além de Senhora.

Da lista apresentada no final do parágrafo anterior, é possível destacar vários aspectos que podem fornecer ao leitor uma visão objetiva daquela época. Neste sentido, vale ressaltar a observação feita pelo escritor francês Marcel Proust num pequeno livreto dedicado ao mundo da leitura: Sobre a leitura. Segundo ele, a leitura, é para nós, a iniciadora de mundos, sem a qual não acessaríamos. Desta maneira, afianço-te, caro leitor, que ler Machado de Assis, José de Alencar, Honoré de Balzac – sobre quem Karl Marx fez significativas afirmações no que diz respeito à análise da sociedade capitalista a partir de sua obra A comedia humana – é algo para lá de singular. Se isso é fato, então me parece ser significativo para os estudantes, sejam eles do ensino fundamental ou do secundário e aqueles, de um modo em geral, frequentadores dos liceus, se debruçarem sobre esses clássicos da literatura universal como objeto de estudo e de entretenimento. Para o momento, escolhemos José de Alencar e sua obra que, de modo geral, principalmente aquela do chamado período urbano e também os romances fazendeiros, pode nos dizer algo sobre o ontem.

Conforme já aventamos aqui várias vezes, o escritor tem, além da sua verve ficcional, obras de envergadura para o mundo da política brasileira, entre elas, Cartas de Erasmo – uma série de missivas que o político endereçava ao Imperador D. Pedro II apontando lhe diversos problemas existentes na Corte, como por exemplo, aqueles provocados por uma casta de burocratas aristocratizados que sangrava, não só politicamente a Nação, mas também financeiramente. Ali o leitor também encontrará diversas abordagens sobre as constantes trocas efetuadas pelo monarca – na condição de arauto do Poder Moderador – na chefia do seu Ministério: ora liberais – luzias – ora os conservadores – saquaremas. Há ainda o livro Sistema representativo – o interessado pode acessá-lo gratuitamente no site do Senado Federal.

Posto isso, acho oportuno dizer que no começo do próximo mês a revista Sem Aspas – organizada pelos professores e alunos de Ciências Sociais da UNESP – campus de Araraquara, lançará mais uma edição que veiculará um artigo que desenvolvi sobre o sentido do escravismo num determinado romance de José de Alencar. Mas antes de entrar propriamente na exposição, sintética do que proponho enquanto análise do pensamento do político que externa em seu romance o que entendia ser a escravidão brasileira, atentar-me-ei, mesmo que laconicamente, nas observações que o escritor faz em seus livros, principalmente no que diz respeito à sua fase indigenista. É preciso ter claro que Alencar está escrevendo a partir da perspectiva do europeu que colonizou o Brasil. Neste sentido, as suas personagens indígenas sempre terão que absorver a cultura do colonizador, como fica evidente nas enunciações presentes em Iracema, além das narrativas que me possibilitam entender uma visão um tanto quanto edênica dos territórios americanos, conforme Sérgio Buarque de Holanda apresenta em Visão do Paraíso.

Sendo assim, é possível especular que o romancista – político conservador, mesmo vindo de família de liberais – evidenciava que, na trindade étnica formadora do Brasil, isto é, o elemento africano, o indígena e o europeu, o último tinha missão “civilizadora” já que os dois primeiros seriam desprovidos de capacidades de se tornarem autônomos. Desta forma, me parece que a escravidão, para Alencar, tinha como função proporcionar ao cativo a possibilidade deste expandir-se a partir do contato com o escravagista, de acordo com o que Aristóteles expõe em seu texto Política, mais especificamente nos capítulos que formam o Livro 1. Se no plano político, o escritor era contrário ao fim do escravismo a partir de decretos governamentais – postura essa que lhe custou, de acordo com alguns pesquisadores, a sua indicação ao Senado que seria outorgada pelo Imperador D. Pedro II, no âmbito da ficção, o romancista dava asas às suas visões de mundo, apresentando enunciações em que o escravo convivia pacificamente com o seu algoz, no afã de conseguir a tão sonhada alforria. Essa chave interpretativa pode ser comparada com o que o pensador inglês Thomas Hobbes discorre em seu livro Leviatã, ou seja, as razões que fazem com que os homens fundamentam pactos para viver em sociedade e uma delas diz respeito a não passividade que uns teriam para se tornarem escravos. Sendo assim, o africano não aceitaria solenemente a condição de cativo acreditando que sua relação com o seu algoz pudesse civilizá-lo.

Claro que a posição pró-escravidão de Alencar lhe valeu polêmicas de diversas envergaduras, inclusive com o abolicionista Joaquim Nabuco, para quem o sistema de cativeiro, mantido no Brasil, corrompia toda a estrutura social, inclusive a família, pois, segundo ele, as relações entre escravos e escravagistas eram mantidas por intermédio da violência, seja em que nível for. As observações do diplomata monarquista Nabuco se encontram, em linhas gerais, em seu livro O abolicionista. De qualquer forma, seja a posição de José de Alencar, de Joaquim Nabuco ou até mesmo de Machado de Assis – para quem a escravidão corrompeu a estrutura da sociedade brasileira, me parece que, usando da ironia -– uma coisa é certa: os textos machadianos se aproximam muito das abordagens do sociólogo Florestan Fernandes, para quem o cativeiro corrompeu desde o escravagista, passando pelo escravo chegando aos “homens livres”, entretanto, a derrota maior ficou para o africano, que se viu obrigado a viver na condição de pária da sociedade que surgia para o capitalismo internacional. Sendo assim, ler os clássicos da literatura – quiçá sua escrita às vezes hermética para o leitor do século XXI – sobretudo José de Alencar, é necessário para se conhecer um quantum do nosso passado, usando essa informação para compreender esse presente, principalmente no que diz respeito às relações entre cidadãos e seus representantes nas esferas Legislativa e Executiva.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, sociólogo, professor no ensino superior e médio em Penápolis. Pesquisador do Grupo Pensamento Conservador – UNESP e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS-UNESP. Escreve às quintas-feiras neste espaço: www.criticapontual.com.br. E-mail: gilbertobarsantos@bol.com.br, gilcriticapontual@gmail.com, e social@criticapontual.com.br.

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