Interpretações e suas temperaturas

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Sem saber ao certo o assunto que me levará a escrever algo de salutar importância aos meus leitores semanais, me coloquei à tarefa de vasculhar a memória em busca de algo tão significativo que fizesse com que aqueles que percorrem as linhas que confecciono e publico aqui, ou as deixo engavetadas, talvez por achá-las sem um fundamento adequado ou que possibilitem aos olhos que as percorrem um quantum de reflexão, ou mesmo de entretenimento. Foi assim que iniciei o que penso ser um texto reflexivo sobre os últimos acontecimentos nessa sociedade globalizada, na qual, tudo se transforma assim que acaba de ser construído. Desta forma, o presente artigo pode ser dissolvido assim que a leitura terminar.

Diante dessa constatação, quereria eu poder tratar aqui da total contradição existente na sociedade brasileira entre os que ocupam os cargos eletivos, sejam eles em que esferas forem: municipal, estadual e federal nas instâncias do Executivo e do Legislativo. Começarei tentando entender porque o lema que orna o pavilhão nacional “Ordem e Progresso” vem sendo cotidianamente desrespeitado e o povo assistindo a tudo como se observasse uma partida entre solteiros e casados em final de ano para marcar a despedida daquele que se foi, mas querendo ficar e esperando o que deverá chegar, porém, com muito medo, como dizia o filósofo alemão Arthur Schopenhauer [1788-1860] sobre os reais motivos que levam um bebê recém-nascido chorar ao vir a esse mundo.

Pois bem! Se o lema da bandeira não condiz com a realidade nacional, até porque a legislação vigente na Nação há muito vem sendo desrespeitada por intermédio de hermenêuticas estranhas a vontade popular, expressa em ações que propunham leis mais rigorosas para punir políticos corruptos – talvez as interpretações existam justamente para isso, ou seja, para apontar que a letra fria da lei não sobrepujará jamais o desejo humano atrelado a presunção e a vaidade de se chegar a algum lugar, mas ai a problemática é outra e eu não pretendo me enveredar por esse espinhoso caminho percorrido por cidadãos sem cidadania. Se por um lado, não há como a ordem ser mantida e todos sabem o que o brasileiro assiste no momento, seja em que instância for, por outro, o contrário de progresso poderia ser regresso, todavia, a roda da história sempre gira em sentido positivo, portanto, não se tem retrocesso, mas apenas estagnação e, desta forma, é possível dizer que a desordem, provocada pela inexistência dum povo consciente do seu papel na construção de uma sociedade mais equânime, leva um povo à acefalia e à necrose.

Esse quadro me leva a crer, como disse em outro lugar, a apontar que as leis aqui no Brasil estão fora do lugar. Contudo, de acordo com Machado de Assis – para alguns críticos internacionais é melhor que Honoré de Balzac – não adianta mudar as leis de uma sociedade se a elas não vierem mudanças radicais nos hábitos populacionais. Ou seja, que adianta criar um amontado de códigos, decretos se, no momento de sua aplicabilidade o que vale mesmo é o poder aquisitivo e vaidoso de determinados príncipes que se querem reis, cujas coroas estão carcomidas pela ferrugem e pela presunção e aeternus processos que pululam no Judiciário e no Ministério Público. Contudo, deixarei esses procedere aeternus para outra ocasião e me concentrarei no real motivo do texto de hoje, qual seja, tentar entender porque a Ordem e o Progresso que orna o pavilhão nacional e honra qualquer cidadão vem sendo colocado em segundo plano, para não dizer, lançado na fétida latrina por uma casta de plutocratas e seus fieis escudeiros, os burocratas aristocratizados. Ora, todos são cônscios que sem o devido equilíbrio, o devir do ser social e do sujeito histórico, quando ordenado estará repleto de falhas e a harmonia entre os homens deixará de existir.

Muitos dirão que enquanto existirem categorias sociais, divididas entre os que governam e os que são governados, conforme nos aponta a teoria das elites formulada por dois pensadores italianos – Vilfredo Pareto [1848-1923] e Gaetano Mosca [1858-1941] – não haverá harmonia, portanto, a utopia de uma sociedade igualitária e planificada deve ser acalantada. Há quem pense o contrário, isto é, que se é possível conceber um mundo em que todos possam conviver de acordo com as suas qualificações, sem que as condutas individuais provoquem desarmonia, a ponto de uns terem muito e outros absoluta nada e viverem na completa miserabilidade. Que tal refletir sobre essas possibilidades! Talvez os primeiros passos sejam dados a partir do fim daquilo que Machado de Assis [1839-1908] nos aponta em vários de seus textos o que levou muitos críticos literários a coloca acima de Honoré de Balzac [1799-1850] e Charles Dickens [1812-1870] justamente por conta de suas narrativas darem conta das mazelas sociais, como por exemplo, a de Braz Cubas um defunto-autor, cujo ato enunciativo dá-se após sua morte ou quase isso, entretanto, seus enredos dizem respeito a uma sociedade que está morta diante das práticas de seus políticos – e olha que o Bruxo do Cosme Velho escreveu isso nos finais do Brasil Oitocentista e agora o país se encontra em pleno século XXI, contudo paralisado e em pleno estado vegetativo e, porque não, necrosado pelas práticas dos políticos que sempre encontram guarida para as suas estripulias nos hermeneutas de plantão.

Enfim, para quem não tinha nada de proveitoso para trazer aos seus leitores essa manhã, me parece que consegui avançar bem, mesmo tendo aquela dúvida cruel a corroer meus neurônios: quem era mais importante para o sistema escravista: o elemento africano ou escravizador? A resposta depende do olhar do indivíduo que pretende analisar racionalmente os sujeitos históricos que formavam aquela sociedade, legando para os homens do futuro – esses que habitam o país hoje – resquícios que lembram ainda os tempos da senzala e da casa-grande e seus capitães-do-mato. Esse quadro social só será alterado quando os atores resolverem modificar o enredo que estão encenando, isto é, endeusar quem tem sérios problemas com a Justiça, principalmente no que diz respeito à maneira como as esferas públicas e privadas foram tratadas durante seus mandatos eletivos. Como dizia Castro Alves, a praça é do povo assim como o céu é do condor e o desejo do cidadão histórico foi de que as leis deveriam punir de forma exemplar políticos que se locupletam com o dinheiro público, entretanto, a letra fria da lei, que deveria ser esquentada pelo desejo do cidadão, foi congelada por interesses escusos, mas ai a história é outra. Para o momento, eu e você, caro leitor, fiquemos com um pequeno excerto do poema Tristeza do Império – de Carlos Drummond de Andrade [1902-1987]. “Os conselheiros angustiados/ante o colo ebúrneo/das donzelas opulentas/que ao piano abemolavam/‘bus-co a cam-pi-na se-re-na/pa-ra l-vre sus-pi-rar’,/esqueciam a guerra do Paraguai,/o enfado bolorento de São Cristóvão,/a dor cada vez mais forte dos negros/e sorvendo mecânicos/uma pitada de rapé,/sonhavam a futura libertação dos instintos/e ninhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de/Copacabana, com rádio e telefone automático”.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, sociólogo, professor no ensino superior e médio em Penápolis. Pesquisador do Grupo Pensamento Conservador – UNESP e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS-UNESP. Escreve às quintas-feiras neste espaço: www.criticapontual.com.br. E-mail: gilbertobarsantos@bol.com.br, gilcriticapontual@gmail.com, e social@criticapontual.com.br.

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