Flanando entre as estrelas

Gilberto Barbosa dos Santos

 

A exemplo do poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), autor de clássicos poemas, inclusive do livro As flores do mal (São Paulo: Penguin, 2019) publicado em 1857 na França, gosto de flanar enquanto me desloco pelas ruas da cidade em direção aos locais de trabalho. Parece um nada, uma quimera de tempo passado entre o sair e o chegar, mas em tempos pandêmicos, o deslocar de um canto a outro pode sugerir insegurança, tendo em vista que muitos viventes se recusam a seguir as recomendações feitas pelos cientistas com base em evidencias e centenas, para não dizer milhares de horas de estudos e pesquisas. Mas, e daí, tenho mesmo que percorrer as distâncias e ainda assistir ao teatro dantesco que se apresenta em meu cotidiano? Diante do espetáculo mortífero, paro e fico pensando por que cargas d’água o ser que se quer humano não consegue entender a complexidade do momento? Procuro lá no fundo do cérebro, se é que o órgão mais importante do existir, lá tem um tal espaço como há nas salas de aulas onde gostava de ficar nos meus tempos ginasiais. Vá lá que existe o tal local dentro da caixa craniana, o revisito, não para encontrar oxigênio para seguir viagem, porém, quem sabe localizar um quantum, mesmo que efêmero para a pergunta feita no início desse parágrafo. Não consigo encontrar nada, então, melhor é seguir a jornada.

Tendo dentro da cabeça uns versos do poeta que flanava pelas ruas de Paris, capital mundial do século XIX como o adjetivou o filosofo frankfurtiano Walter Benjamin (1892-1940) que, desesperado por conta do crescimento do nazismo pela Europa, resolve dar fim à sua existência. Temia cair nas mãos dos fascistas irracionais, se é que pode dizer que há razão em sujeitos que desejam a exterminação do outro, seja de que forma for, isto é, pela cultura, pela aniquilação ideológico ou por simplesmente achar que, por estar no topo da pirâmide independentemente de que categoria social for: profissional ou qualquer outra hierarquização, conforme nos diz a jornalista estadunidense Isabel Wilkerson em seu livro Casta: as origens do mal-estar (Rio de Janeiro: Zahar, 2021) que coadunando com outros críticos literários das américas ou dessas paragens, nos informa o quão vazia é a vida do sujeito que, para se sentir útil ao próprio ego, precisa agredir, vilipendiar, destroçar, humilhar o outro seu semelhante. O mais doido nisso é que de segunda a sexta-feira, enxovalha aquele que não lhe é favorável do ponto de vista da ideologia e no domingo se dirige aos altares espalhados pelas mais diversas paróquias se dizendo ser um cristão.

Meus caros leitores, pensei tudo isso ou quase isso, tudo dependerá de quem estiver percorrendo essas linhas, enquanto flanava pelas ruas, praças e avenidas dessas e de outras paragens. Sim, pois enquanto o corpo material caminhava tergiversando com o cérebro, alma, aquela dita por Platão como sendo a que move o ser enquanto expressão carnal, viaja por outras localidades já visitada nessa pequena experiência chamada vida ou por pontos que ainda não foram consumidos por uns olhares quase que críticos e ainda assim, continuo a pensar naquele romance lido nos tempos da adolescência. Recordo que percorri aquelas páginas do livro do Luiz Puntel intitulado Deus me livre (São Paulo: Ática, 1984) e o conteúdo dizia respeito a uma cidade fictícia numa região rica do Estado e, por conta disso, a miséria reinava, tendo uma área em que se formava uma favela. Até aí nada de mais, se bem que só sabe o que ocorre no interior de aglomerados de palafitas quem já viveu uma temporada por lá, coletando com os olhos situações em que as pessoas, para ter com o que encher a barriga, reviravam lixos hospitalares, enquanto do outro lado, num bairro nobre, o feirante não podia vender as bananas que estavam com a casca com pintas pretas. Vai entender essa humanidade que se quer humana, mas não se compraz com a dor alheia e nem presta socorro a quem passava fome.

Continuei o meu périplo pensando numa canção do Belchior (1946-2017) em que o enunciador diz que a noite fria o ensinou a amar mais o dia por conta dos raios solares. Como podem observar meus caros leitores, a tal narrativa do romance que eu lera na adolescência ainda mitigava lá no fundo do meu cérebro que, finalmente foi localizado por uma mente inquieta que se angustiava diante dos espetáculos que desfilavam diante dos olhos que, críticos, tentavam buscar no ponto de fuga, conhecido como linha do horizonte, um dia diferente do presente, contudo, o que se vislumbra era um homem, na sua singularidade, amedrontado diante de um nada que já é existente no aqui e no agora. Será que em virtude desse amanhã quase que sombrio, este indivíduo se encaixa bem na análise feita pelo pensador dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855), segundo a qual, o ser humano tem medo de ter medo e, em virtude disso, não se recolhe diante do imponderável, mas apenas sai de peito aberto duvidando de que a ciência esteja certa? Caso o sujeito que descrê dos preceitos científicos esteja errado, poderá, num futuro não muito distante, estar residindo dentro de uma cripta a espera de uma vala comum em qualquer cemitério duma cidade singular? Seguindo em frente com meus pensamentos e temores, procuro me proteger, não somente do vírus, mas também das pessoas que, mesmo diante dos números, fingem que não é com elas, fazendo com que me pergunte mentalmente “para quem os sinos dobram”. Claro que a resposta todos sabem, contudo, ninguém quer dar ouvidos a ela, pois tudo passará, e enquanto a dor não for do ser em si, por que se ocupar em pensar sobre ela e no pesar alheio?

Chego ao destino meio sorumbático, ainda tendo dentro do cérebro ecoando as linhas que percorri daquele romance Deus me livre e de como a ganância humana fez uma personagem manipular as pragas bíblicas para tentar expulsar as famílias que ergueram seus barracos naquela área cobiçada pelos gananciosos que não pensaram e, aliás, creio que continuam desdenhando de quem passa fome, afinal, para quem os sinos dobram. Enquanto os casebres eram arruinados pela insensatez de homens que se dizem portadores das partículas divinas, mas não as reconhecem em seus semelhantes, um adolescente bailava com a garota que aprendeu a apreciar durante os intervalos das aulas numa escola pública esquecida por deus, como se diz no jargão popular. Na verdade, os passos dados tendo a moçoila em seus braços não passaram de um sonho do qual foi despertado quando uma parede de seu quarto desabava diante de seus olhos e do desespero de seus pais. Lá se foi o sonho bom e o amor que o adornava permaneceu no eterno silêncio onírico. Aquela manhã seria impossível atender ao chamado do professor quando lhe perguntasse qual era a diferença entre a filosofia platônica e a aristotélica. Lógico que a sua situação poderia ajudar na resposta, pois Platão dizia que no mundo das ideias, tudo era perfeito como no sonho que teve com a amada de quem gostava em alarde. Já Aristóteles afirmava que tudo advinha da experiência e a dele era aquela: sem casa para dormir naquela noite fria de inferno.

Vencida a jornada laboral, retornei o mesmo caminho da ida e tentando olhar para a frente, desejando encontrar as respostas formuladas no mesmo percurso da ida, todavia, o olho apenas percorreu o horizonte divisando o dia terminando e a noite chegando com o Sol pintando de laranja aquele belíssimo espetáculo. Esse que flana prefere, quiçá o glóbulo ocular continuar presenciado as cenas dantescas de outrora, voltar-se para o seu interior em busca do mundo perfeito entoado por Platão em várias de suas passagens e nessa transposição entre filosofias e outras literaturas, o cavaleiro que não é o quixote de Cervantes, consegue encontrar uma estrela que brilha no firmamento indicando-lhe o caminho de volta à sua residência, onde pode finalmente se sentir seguro e longe das diatribes organizadas pelos homens que dizem não ter medo, mas tem medo de ter medo, contudo querem apenas vencer as próximas eleições.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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