Entre o imaginável e o realizável

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos

 

Quando o indivíduo que se propõe a dizer algo por intermédio da escrita, o primeiro momento pode levá-lo a pensar no exemplo dado pelo filósofo inglês Jonh Locke (1632-1704) no que diz respeito à lousa em branco, sendo que a partir da experiência é que o texto vai sendo, lentamente, redigido por aquele que pensa existir, não do ponto de vista interno, da sua própria individualidade, mas do externo, delimitado pelo espaço físico, social e emocional. Neste sentido é que fico cá com os meus ideais tentando preencher uma breve lacuna, mas não só, mas sobretudo, fazer com que o meu leitor ou, se imaginar, meus pares, me acompanhem. Mas dizer o que neste momento em que tudo se dissolve num piscar de olhos, provocando calafrios na maior parte dos viventes, justamente por não ter uma vida para chamar de sua, já que existe somente para os refletores sociais. Desta forma, me parece alvissareira a provocação feita pelo escritor francês Édouard Louis. Numa matéria publicada pelo jornal Folha de S. Paulo neste sábado, 08 de julho, enfocando suas enunciações, o autor disse, logo no começo: “sempre penso em quanta energia gastamos produzindo as mesmas normas que nos destroem”.

Posto isto, o que dizer? Eis a tradicional interpelação que nunca cessará de ser cravada, levando em conta que o meu objetivo é sempre o de entender o mundo ao qual existo interagindo com os demais, dentro dum sistema que, ao que tudo indica, se dissolve a cada instante, deixando para a posteridade um nada, ou apenas os fantasmas dum pretérito que se esvaiu com o caminhar dos ponteiros do relógio, bem externalizados num quadro do pintor surrealista espanhol Salvador Dali (1904-1989). Não tratarei da obra em si, pois o meu escopo aqui é apenas o de tentar abranger os sentidos e os motivos que nos levam diariamente a reproduzir aquilo que não concordamos ou não nos serve mais, como dizia o cantor Belchior [Antonio Carlos Belchior: 1946-2017] em uma de suas maravilhosas canções: “o passado é uma roupa que não serve mais”. Se ele estiver com a razão e creio que sim, por que insistimos tanto em viver um pretérito que ficou lá no medievo? Será que posso recorrer aos três principais pensadores sociais, isto é, Emile Durkheim [1858-1917], Karl Marx [1818-1883] e Max Weber [1864-1920]? Se eu e tu, oh meu caro leitor, levarmos em conta como cada um deles leu o mundo a partir de seu local de fala, diríamos que o primeiro nos auxiliará a compreender os fenômenos sociais que se repetem, ou seja, que são reiterados. O segundo, pode ser útil para analisarmos “as grandes transformações histórico-estruturais” e o terceiro, “para captar o sentido e interpretar a ação social” [CARDOSO, 2014, p. 23].

Já que minha enunciação pendeu lá pelos lados da Sociologia, me parece interessante, mesmo que laconicamente, defini-la e faço uso aqui do que informou o cientista social e ex-presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso em seu livro A soma e o resto: um olhar sobre a vida aos 80 [Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014]. Segundo ele, a Sociologia, enquanto ciência, “é uma maneira de ver o mundo em que a gente se esforça por ver o que se repete, as estruturas, o que são leis” [2014, p. 27]. Será que adiantou alguma coisa na busca pelas respostas às interpelações formuladas até aqui? Parece-me sim, pois se o presente se dissolve no ar ou tem sua movimentação semelhante às das nuvens, pois quando olhamos estão dum jeito, para, no instante seguinte, já não existirem mais. Tendo isso como premissa, fico aqui tentando entender movimentos, segundo os quais, as pessoas, a exemplo do que disse o escritor francês do início desta reflexão, se esforçam para reproduzir aquilo que está ceifando as suas existências, mas não no âmbito físico, mas da vivência incorpórea. Neste sentido, retorno a um dos criadores da Metafísica, o Sócrates que, reproduzindo os ditos do Oráculo de Delfos, propalava aos quatro cantos do mundo que era necessário o homem conhecer-se a si mesmo. Na mesma toada, pode ser encontrado Diógenes de Sinope que viveu dentro dum barril e fazia parte do pensamento helenístico, além de ser conselheiro de Alexandre Magno (356a.C-323a.C). O pensador dizia que todos devemos viver como um cão, de maneira simples. Será que conseguimos isso ao longo de nossas existências?

Ao tentar responder a essa querela, é evidente que me deparo com o que é real e com o que não é, se encontrando apenas no campo do desejo, do imaginado, do pensado. Se perguntar quem deseja um mundo pleno de paz e harmonia, a resposta será 100% indicativa de que os consultados dizem de maneira afirmativa, entretanto, quantos estão predispostos a começar a praticá-lo assim que terminar de ler essas linhas? Eis a interpelação que troa às mais recônditas paragens do orbe, portanto, um grande desafio nessas jornadas líquidas em que tudo parece ser algo, mas quando se muda o foco, a coisa já é diferente. Todos almejam amar, mas são poucos os que estão dispostos a entender, de fato, o que é esse sentimento para além da posse do outro que é visto como uma mercadoria, pois o pronome possessivo entoa como no canto da sereia que foi ludibriada por Ulisses em seus périplos em busca de sua amada lá mundo mitológico grego. Por que se diz “meu” amor? Será que esse verbo tem em seu cerne a posse, o poder, ou é apenas uma terminologia para convencer o nubente a caminhar com quem prometeu alguma coisa em troca das correntes que aprisionarão o seu semelhante numa ideia do vir a ser, pois tudo ficou transferido para amanhã, através da famosa expressão: “quando isso e quando aquilo”.

Enfim, para voltarmos, penso que tu que estais aqui comigo nessas linhas finais desta reflexão, meu caro leitor, concorda quando digo que me parece que muitos perdem preciosos tempos em casamentos ultrapassados, pois o escopo é manter a tradição, o dado, o feito pelas gerações anteriores, tudo em nome dos pronomes e predicados construídos muitas vezes por intermédio de atrocidades como as praticadas contra os povos nativos da Terra de Santa Cruz, ou melhor, de Pindorama. Não devo deixar de enfatizar as sucessivas violências praticadas contra os africanos num pretérito de dor, sangue e muitas lágrimas que são mantidas até hoje, haja vista o preconceito étnicorracial e a famigerada democracia racial. Esses relacionamentos esquálidos, muitas vezes, têm como objetivo principal, fazer com que os participantes se ludibriem achando que o mundo externo é o mais importante, se deixando levar pelo “canto da sereia” homérica. Quando se tem uma concentração excessiva nos corpos, o essencial, que não é visto pelos olhos, fica em segundo, terceiro, quarto plano. Eis os tempos líquidos, modernos, para não dizer, quase pós, pois tudo é passado em busca de uma nova existência pautada no vir a ser que é construído através de discursos que objetivam, tão somente, a posse numa desenfreada busca pelo vazio existente dentro de corpos sarados, mas ocos por dentro. Desta forma, se forem instados a explicar o sentido do sentir, com certeza, bugarão.

 

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos, licenciado, bacharel e mestre em Ciências Sociais, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis. e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com. www.criticapontual.com.br.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *