Entre o real e o ficcional

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Enquanto Brasília (DF) vive dias turbulentos, já que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) decide se cassa ou não a chapa Dilma/Temer (PT/PMDB) escolhida pela maioria dos incautos, nem tanto assim, eleitores em 2014, o Congresso Nacional, mesmo manquitola e assolado por graves denúncias de corrupção, tenta impor à sociedade uma quantidade de impopulares reformas para fazer a esfacelada máquina pública andar, pois a ex-presidente Dilma Rousseff ao sair, ou melhor, ao cair do pedestal presidencial deixo-o acéfalo de recursos financeiros, dificultando a navegação da nau brasileira – abordarei essa problemática noutro momento. Se essas duas pontas da vida brasiliense estão que é uma confusão só, achei prudente esperar o desenrolar das questões e como as mesmas serão equacionadas pelos nossos togados e políticos encastelados na Câmara Federal e no Senado.

Contudo, se optei por não tratar dessas temáticas, então do que vou aqui preencher os cérebros dos meus leitores semanais? Pergunta para lá de periclitante quando o meu escopo é sempre o de tentar fazer com que o indivíduo se entretenha do começo ao final com as minhas narrativas e, para que isso ocorra, devo compor uma enunciação atrativa desde as primeiras palavras, confeccionando silabadas adjetivadas pelo sentido que sempre tento impor às minhas enunciações – espero estar conseguindo alcançar essa meta que já não mais a de quem escreve, isto é, eu, mas sim daqueles que me leem. Desta forma estou finalizando o segundo parágrafo sem ter ainda um assunto em tela ou algo que possa fisgar o cidadão-leitor. Até agora nada, mas ao passar os olhos por um jornal de circulação nacional e, em seguida checar a minha caixa postal eletrônica, observei um grande tema, já que a reportagem e o conteúdo da mensagem recebida diz a mesma coisa, ou seja, o aumento de homicídios de jovens negros no Brasil. As informações constam no Atlas da Violência 2017 (http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=30253&catid=4&Itemid=2) lançado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) que realizou o levantamento em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Se fosse para resumir os dados de forma direta e sem rodeios seria mais ou menos assim que a coisa tingiria os papeis com suas marcas e grafias: em sua maioria os assassinados são homens, jovens, negros e com baixa escolaridade. Essa observação é real ou ficcional? E o que ela esconde? Não precisa ir muito longe no que diz respeito à noção de tempo, isto é, nos troncos e pelourinhos, chicotes e sevicias que marcaram os mais de três séculos de escravidão deixando marcas indeléveis neste país, cuja desigualdade social evidencia o descaso do passado com os descendentes de escravos, desníveis que lamentavelmente não se mudam com decretos e vontades de governos e grupos populistas, travestidos de estadistas e políticos vocacionados para tirar o país da miséria que se encontra. Posto isso, me parece que antes de continuar na reflexão, é preciso acrescentar que a miséria maior não é aquela que assombra o estômago, mas a proveniente do espírito – espírito aqui se assemelha ao que compreendem os alemães quando utilizam o volksgeist – ou seja, o espírito do povo. Portanto, a pobreza antes de assombrar o indivíduo individualizado, se faz enquanto fruto do sujeito histórico. Dito de outra forma, ela nasce no ethos, no modo de ser do brasileiro.

Diante do exposto acima, faz-se necessário observar que os dados frios de hoje são vistos como consequências de um pretérito, não muito distante, em que os descendentes de africano, assim como seus antepassados que aqui aportaram como mercadorias, não significam nada, a não ser na condição de braços para as lavouras e ventres para as sevicias de escravagistas empedernidos. O resultado é o que todos enxergam hoje. Falta de sentido no presente e ausência de objetividade para se construir o futuro, mesmo porque até o passado foi-lhe surrupiado quando se viu forçado a se tornar cativo numa terra distante. Muitos foram os que indicaram caminhos, medidas e decretos, mas ainda a situação permanece a mesma, a exemplo do que aconteceu com os africanos e suas proles que se viram, da noite para o dia, destituídos, não dos grilhões que os prendiam ao tronco e ao chicote, mas das mínimas condições para projetarem o amanhã, mesmo que cativos. Falam em liberdade conseguida, através de concessão na manhã de sábado 13 de maio de 1888, contudo, o ato de ser livre não emancipou os africanos de suas condições de serviçais escravizados por serem considerados inferiores.

Muitos podem dizer que este que vos escreve exagera no trato com a problemática, aumentando a questões e colocando muita gente no balaio do preconceito, contudo, busco uma observação feita pelo filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard (1813-1855), segundo a qual, o ser humano teria medo de ter medo. Transpondo essa breve sentença para o caso em tela, é possível apontar que o brasileiro tem medo de ter preconceito, isto é, emitir uma sentença antecipada do que ainda não se conhece. Se isso é fato, por que ainda os descendentes de escravos são expostos às condições vexatórias e humilhantes em seus cotidianos? Pergunta difícil, principalmente porque muitos tendem a esconder a sua visão preconcebida e formatada nas salas de jantares, durante os lautos cafés das manhãs e rodinhas em seus clubes e churrasquinhos realizados nos finais de semanas. Desta forma, o que seria melhor: dizer que não tem apreço por um cidadão que não pertence a sua etnia, ou afirmar se possuidor dum discurso que prega a multietnicidade, mas sorrateiramente nos bastidores faz de tudo para que o cidadão, profissionalizado, com excelente formação, não chegue onde sua competência permitirá? Outra interpelação complexa, mesmo porque as pessoas estão acostumadas a dizerem que o “outro” o é de fato preconceituoso e racista!

Mas não é somente de interpelação, questionamento e problematização que sobrevive um tema, mas também com algumas saídas, já que o caos está dado e os números apurados pelo Ipea e o Fórum de Segurança Pública não são ficcionalizações, mas realidades nuas e cruas que retratam e, neste ponto, entra o trato que os brasileiros darão aos frios apontamentos. Bom! Se a alforria de 1888 não emancipou o escravo e nem o escravagista, o que se esperar então da sociedade nacional que emergiu daqueles acontecimentos e da Proclamação da República? Ausência de solidariedade! Acho que para se chegar a um nível significativo de solidariedade e sociabilidade será preciso investimento pesado na educação, mas não nesta que é oferecida pelas instituições públicas e privadas de ensino brasileiras, mas sim naquela que é ofertada nos primeiros anos da socialização do indivíduo, isto é, durante aquele processo pela qual o sujeito passa para se tornar um ente social histórico. Eis a árdua tarefa, mesmo porque responder que cada um precisa fazer a sua parte e creio que deva ter esse princípio básico por iniciativa, entretanto, não basta dizer “eu faço, mas meu vizinho não faz”. Ora se é seu vizinho, eu creio que em algum momento vocês irão dialogar, e ai é que a coisa começa a fazer sentido. Mas é difícil, mesmo porque o ethos diz: todo mundo é assim, porque eu teria que ser diferente? A pergunta final tem como escopo apontar que o racismo é ainda muito forte entre nós, mesmo que muitos não queiram, ele está ai e é real e não tê-lo presente entre nós, é ficção.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, sociólogo, professor no ensino superior e médio em Penápolis. Pesquisador do Grupo Pensamento Conservador – UNESP e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS-UNESP. Escreve às quintas-feiras neste espaço: www.criticapontual.com.br. E-mail: gilbertobarsantos@bol.com.br, gilcriticapontual@gmail.com, e social@criticapontual.com.br.

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