Educação em tempos líquidos

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Estava aqui hoje, em minha biblioteca, pensando sobre o universo pandêmico e a posteridade desse fenômeno social, mesmo que de saúde coletiva. A primeira coisa que me ocorreu foi com relação às querelas envolvendo o mundo educacional e como este ficará depois que a pestilência passar ou arrefecer o seu ímpeto sobre o corpo humano e suas consequências letais para a vida ativa nas mais de cinco mil cidades brasileiras. A questão ganhou meus espaços cerebrais justamente por ser esta área, ou seja, a existência social, a responsável pela dinamicidade econômica de uma Nação. Sem muitas delongas, é preciso referendar que um país só caminhará se for capaz de conservar o seu passado, isto é, a sua História, independentemente do que ali está contido. Desta forma, não se pode negar, como pretende fazer um determinado burocrata – alçado ao cargo por questões políticas -, a negatividade que foi e continua sendo o sistema escravista brasileiro que durou mais de três séculos, sendo eliminado mais por pressões do capitalismo internacional do que propriamente dito por benevolências dos agentes que fizeram com que esse escarnio ao humano – cuja tonalidade da pele é preta – durasse mais de 300 anos, maculando as estruturas sociais, econômicas e políticas que formaram o Brasil.

Posto isto, meus caros leitores, tentarei externar aqui um pouco como observo esse processo educacional nacional que ainda não foi capaz de fazer com que os brasileiros ingressem de fato no mundo global de mercadorias que se dissolvem no momento seguinte à sua construção. Ao se imiscuírem nessa esfera abstrata da vida, ou melhor, virtual do vir a ser do ser que está aqui no presente pensando sobre o futuro, contudo, sem equacionar devidamente o seu passado, isto é, sem ter os fantasmas do ontem a lhe atormentar, como agora quando muitos saíram as ruas pedindo o retorno dos militares ao poder. Dito de outra forma, querendo que a ditadura voltasse, inclusive com a reedição do tosco AI (Ato Institucional) n.º 5 que inaugurou o período mais perverso do regime militar marcado por torturas, assassinatos, desaparecimentos de opositores e exílio político de outros tantos. Foram duas décadas e meia em que a democracia era ditada pelos coturnos, portanto, totalmente inexistente. A questão que formulo é a seguinte: o que leva determinado número de pessoas a desejar o retorno de uma época tenebrosa da história do país? No pensamento deste que vos escreve, meus caros leitores, pedir a volta da truculência e da acefalia democrática seria a mesma coisa que desejar que a escravidão voltasse. Não precisam se assustar com tal afirmação, pois sei o quanto o Brasil é racista, contudo, há uma negação de que esse fenômeno social esteja presente entre nós, contudo, quanto mais o preto afasta-se dos degraus inferiores da sociedade, mais ele percebe, ao ascender socialmente, o quanto os olhares que lhes são lançados contém um quanto de escarnio e desejo de que a senzala não fosse banida em 1888, naquela manhã de sábado, 13 de maio.

A partir dessa perspectiva, compreendo que a educação deveria ser a ferramenta, o caminho que todos percorressem para que as desigualdades recrudescem e se arrefecessem as indignações, como a de que o Brasil é um país fortemente marcado pelos seus traços religiosos, todavia, é aquele em que há uma enorme desigualdade social e as populações mais carentes, quiçá a fome que lhes ronda diariamente a existência, são vítimas principalmente da violência policial, ou melhor, do elemento fardado que, na condição de integrante do Aparelho Repressivo de Estado [Louis Althusser 1918-1990], mais agride o cidadão do que o protege. Claro que há miríades de exceções, conforme este jornal noticiou em sua edição de antes de ontem enfocando duas policiais, sendo que uma atuou no PROERD – programa de combates às drogas realizado pela Polícia Militar – e a outra, também agende fardado que se inspirou na primeira para se tornar uma agente da lei – voltarei a essa temática em outro momento. Todavia, a visão que a sociedade brasileira tem dos ARE [Aparelhos Repressivos de Estado] ainda é negativa por conta das agressões e violências que os brasileiros sofrem cotidianamente. Como equacionar isso? Não se soluciona problemas endêmicos, fortemente registrados durante os mais de 300 anos num piscar de olhos como se diz no jargão popular e vociferam políticos gazeteiros e reacionários, ou por decretos e canetadas usando a esferográfica Bic, conforme propalado no início do atual mandato presidencial.

Se a temática é a questão educacional como mecanismo e gênero de primeira necessidade para se tirar o país da crise, como diz o adágio popularesco, quais seriam as medidas adotadas, por exemplo, para que, não somente os descendentes de escravos, mas a população de um modo geral se beneficiasse dos tributos e impostos pagos mensamente à bolsa governamental? Creio que a pedagogia deveria, ao contrário àqueles que pregam rigidez seguida de punição física, atuar no sentido de preparar o cidadão para o mundo global de existência e não para pregar em feudos caquéticos, sejam eles em que esferas da vida ativa estiverem. Todavia, o que se observa, no presente, é um desejo atroz de que a sociedade retroceda aos tempos medievais. Talvez isso esteja ocorrendo justamente pela ausência de uma maioridade crítica, sobre a qual explanou Immanuel Kant (1724-1804) em suas reflexões filosóficas, entre elas as Críticas da Razão Prática, Pura e do Juízo [três livros importantes]. Do meu ponto de vista, acredito que esse processo é atingindo quando os indivíduos conseguirem transformar informações em conhecimentos e não usarem mentiras e distorções, sejam elas em que campo for, para odiar, ludibriar, surrupiar, agredir, mesmo que verbalmente o seu semelhante que pensa diferente. Sendo assim, entendo que um homem não nasce preconceituoso, não vem ao mundo com desejo de aniquilar seu semelhante por ele ter a pele mais escura que a sua. Este sujeito social aprende a ter esse comportamento a partir do meio em que vive [conforme indicam Karl Marx (1818-1883); Emile Durkheim (1858-1917)], durante a sua socialização primária. Recebe valores que depois, durante o processo secundário para se tornarem seres sociáveis, serão confrontados com os de outras pessoas, principalmente no período escolar.

Se é nesse estágio do existir humano que os valores éticos e morais, recebidos pelos homens durante a infância, passam a ser confrontados, então a educação tem um papel fundamental, não apenas na disseminação de conhecimentos, mas de auxiliar os sujeitos sociais a serem mais compreensivos com aqueles que pensam de forma diferente. Afinal, conviver em sociedade significa lidar com os diferentes, com os contrários, respeitá-los, dentro daquele preceito enciclopédico: “não concordo com o que dizes, mas defenderei eternamente o direito de dizeres”. Posto isto, retorno ao pensador alemão Immanuel Kant e seu esquema analítico do homem que descobre a sua individualidade e a constrói para si levando em conta a sua inteiração com o seu semelhante. O autor da obra Fundamentação para a metafísica dos costumes edifica sua linha de raciocínio a partir dos imperativos [observem, meus caros leitores, que no universo da conjugação verbal, o tempo imperativo diz respeito aos ordenamentos], sejam eles categóricos ou hipotéticos. Portanto, a partir deles, de acordo com o filósofo germânico, é possível compreender que a ação do homem em sociedade tem seus determinantes definidos aprioristicamente, sendo que o agir em si tem como vontade o devir, isto é, o resultado do comportamento. Sendo assim, o agir do indivíduo só pode objetivar um fim específico, entretanto, essa finalidade é respaldada pelos valores éticos e morais que recebeu ainda na fase infantil. Então a problemática em tempos pós-modernos encontra-se na definição desses valores e de seus respectivos sentidos.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *