Gilberto Barbosa dos Santos
“Não temos ideia de como será o mercado de trabalho em 2050. Sabemos que o aprendizado de máquina e a robótica vão mudar quase toda as modalidades de trabalho – desde a produção de iogurte até o ensino da ioga. Contudo, há visões conflitantes quanto à natureza dessa mudança e sua iminência. Alguns creem dentro de uma ou duas décadas bilhões de pessoas serão economicamente redundantes. Outros sustentam que mesmo no longo prazo a automação continuará a gerar novos empregos e maior prosperidade para todos” [Yuval Noah Harari. 21 lições para o século 21. Trad. Paulo Geiger. SP: Cia das Letras, 2020. p. 40]. Está é uma interessante observação feita pelo historiador israelense que provoca em todos nós significativas reflexões, principalmente por estarmos em plena pandemia que já dura mais de um ano, modificando completamente a vida humana na terra, abrindo espaço para que a tecnologia tenha papel preponderante em nossas existências. Portanto, uma sociedade pós-pandêmica obrigará a todos nós nos repensarmos enquanto sujeitos sociais e humanos. E a quem caberá a tarefa de auxiliar na construção dessa jornada? Sem ser ufanista, entendo que os cientistas sociais e os pensadores deverão se ocupar desse ofício. Isso acontece porque os olhares deverão sempre estar atentos ao que o homem foi no seu passado, o que está se concretizando no presente objetivando o futuro.
Posto isso, fico cá com uma interpelação: de qual homem está se tratando: do ser em si dentro da sua consciência enquanto ser corpóreo dotado de sentido ou aquele que compreende o processo de construção dos signos, os transformando em significados com múltiplos significantes? Parece-me que aqui, objetivando na construção da reflexão de hoje, meus caros leitores, vale um fragmento poético que diz: “Senhores/O sangue dos meus avós/Que corre nas minhas veias/São gritos de rebeldia” [Carlos de Assumpção – Não parei de gritar]. Essa assertiva abre a introdução do livro Enciclopédia negra, confeccionado pelos pesquisadores Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz e publicado recentemente pela Companhia das Letras. Observando assim de imediato, parece que os dois fragmentos textuais não se coadunam, entretanto, conforme a minha enunciação caminha, creio que os meus leitores entenderão qual é o escopo do texto de hoje. Em primeiro lugar, compreendo que quando se vislumbra o amanhã, aquele que se propõe a tal exercício, deve levar em conta o local de onde está se pensando, ou melhor, “o local de fala”, incluindo aí as questões sociais, históricas, étnico-raciais, econômicas, culturais, enfim, a partir de uma miríade de existências contidas num único ser, como diz aquele poema medieval “para quem os sinos dobram”, segundo o qual ninguém é uma ilha. Se isso é fato, então, a observação do historiador é provocativa a partir da ideia de que no futuro não muito distante quem serão os sujeitos sociais que engrossarão as fileiras dos sem-trabalho, dos cyber-trabalhadores, ou como diz a sociologia específica da área, os cyber-proletários? A esposa do atual presidente estadunidense, Joe Biden, afirmou que qualquer país que investir em educação estará na frente no futuro não muito distante. Creio que aqui pode estar o ponto da simbiose sincrética entre os dois fragmentos para se pensar o homem do amanhã.
Se o passado for usado como ferramenta para isso, todos saberão que o pretérito do Brasil é profundamente marcado pela ausência dos Direitos Civis, bem como daqueles relativos ao universo da política e no âmbito social. Neste sentido, se o momento é consequência do que se plantou ontem, o devir do agora deverá ser o ápice das práticas humanas na atualidade. E aí, meus caros leitores, eu vos pergunto: qual é o agir do brasileiro do presente? Será que a ação é dissonante do seu longínquo período Colonial e escravista? Será que o homem egresso do mundo escravista é um ser emancipado? O sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995), num dos seus variados estudos sobre a questão escravista em nosso país, dizia que depois que se emancipou o elemento escravo, seria necessário alforriar o escravagista. Quem lê assim de chofre esses olhares do catedrático da USP, pode imaginar que é coisa de louco, pois o cativo era o preto e o branco o seu algoz. Entretanto, quando se analisa as estruturas sociais e econômicas da época, é possível vislumbrar que o elemento branco também estava atrelado ao sistema e a engrenagem de vilipendiava o outro, o preto, e do enriquecimento mediante o não pagamento do trabalho alheio. Aqui entendo que a questão passa a ser a de condição e de quem estava com o chicote nas mãos. Neste sentido é que, o Direito Civil foi concedido aos africanos e seus descendentes, mas não a condição de serem homens livres, pois o açoite apenas mudou de nome, mantendo o feitor violento, que outrora era o homem livre, conforme a pesquisadora Maria Sylvia de Carvalho Franco nos apresenta em seu clássico Homens livres na ordem escravocrata.
Como podem compreender, meus caros leitores, o passado ainda se faz presente, porém com outras nuanças. A jornalista estadunidense, Isabel Wilkerson, autora do livro Casta: as origens do nosso mal-estar [RJ: Zahar, 2021], em recente entrevista publicada em jornal de circulação nacional [Folha de S. Paulo. Segunda-feira, 17 de maio de 2021, p. A18] disse que “na Alemanha, eles lidaram com a própria história. Eles fazem questão que as crianças aprendam o que aconteceu, não há monumentos homenageando os perpetradores dos horrores, e os espaços de terror foram transformados em espaços de aprendizado. A sociedade pode não concordar em tudo, mas concordar com um básico de história. E isso não acontece em vários países que lidam com o passado de um horror diferente, o da escravidão. Isso não é um ‘capítulo triste’ da história dos países, é algo que se embute na sua sociedade e que tem que ser reconhecido como tal. E, por fim, acho que é preciso reconhecer que isso machuca todos. A pandemia mostra isso com clareza. O coronavírus não liga para nacionalidade ou cor da pele, mas são os países com maior divisão hierárquica na sociedade que estão no topo de mortes e casos”.
Creio que esse pequeno fragmento da entrevista me permite, caros leitores, retornar ao início deste texto quando apresentei um trecho do livro do historiador israelense abordando o universo do trabalho futuro. O que a jornalista estadunidense enfoca diz muito do pretérito, não só dos EUA, como do Brasil. Lá o leitor encontrará por exemplo, vários trabalhos sobre a questão que não estão restritos à academia, mas no campo literário, como por exemplo, a escritora Toni Morrison (1931-2019) que nos legou os significativos romances O olho mais azul e Amada, entre outros. Sendo assim, entendo que as colocações podem ser analisadas como provocações para pensarmos o Brasil nas próximas duas décadas. Muitos podem dizer que o passado não existe mais, portanto, passa a ser visto a partir do ponto de vista das interpretações, todavia, a escravidão sim, a Colônia também. O estamento que foi edificado alicerçado numa casta da aristocracia empobrecida em Portugal que encontrou campo fértil para o seu refazimento nas camadas da burocracia recém-criada no Brasil a partir de 1808 não é coisa de interpretação, mas pautado nos fatos. Se esse pretérito existiu e há vasta documentação indicando o real e não o imaginado por políticos demagogos, resta saber como ele se personifica no presente. Se nós não entendermos isso com clareza, sabemos o quão doloroso será o futuro desta geração que recebe uma educação pautada em princípios medievais. O homem pode até se voltar para o passado, mas a tecnologia, como diz Yuval, não. Ela estará sempre com um olhar no amanhã e usando o presente para modificar o futuro da humanidade. Será que estamos cuidando com a devida acuidade de nossas crianças e adolescentes? Será que o passado escravagista e colonial deste país, ficou mesmo em seu passado e apenas nos documentos ou o cyber-trabalho tende a precarizar ainda mais a vida humana no Brasil nas próximas décadas. Eis o nosso desafio do presente. Parece ser simples, porém, é complexo na medida em que não basta mudar as leis, mas sobretudo, os hábitos escravagistas personificados no novo chicote: o racismo estrutural.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com, www.criticapontual.com.br.