Conversas ao pé da orelha

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Afinal o que é ser de esquerda num país que respira os ares dos tempos do escravismo – modo de produção que perdurou no Brasil por mais de três séculos -? Não é de hoje que se discute a questão escravista encorpada desde a chegada da Família Real nas praias brasileiras em 1808 – o traslado foi escudado pela marinha britânica, cujo governo era contrário ao sistema escravista. O debate em torno da problemática ocorreu, não por questões humanitárias, mas por interesses econômicos – lembremos que é na Inglaterra que a Revolução Industrial solapa de vez os resquícios do mundo feudal. Só para recordarmos um quantum significativo dessa peleja em torno do fim do escravismo brasileiro, o escritor José Martiniano de Alencar (1829-1877) rompe com o Império – o monarquista Alencar era alinhado com as tendências conservadoras da época. O rompimento do político-romancista com D. Pedro II está associado à vários fatores, entre eles a recusa do monarca em torná-lo Senador, cargo vitalício no Império. Outro elemento seria a questão envolvendo as medidas adotadas pelo governo monárquico visando a eliminação gradativa do escravismo – José de Alencar era defensor arguto, não do sistema econômico escudado na exploração do braço africano, mas sim do direito à propriedade e o escravo era uma mercadoria cujo proprietário teria o direito de usá-la ou dispor dela da maneira como bem lhe aprouvesse. Sobre esse rompimento do escritor-político com a Coroa há vários trabalhos, cujo signatário foi o escritor, entre eles Cartas de Erasmo ao Imperador, no qual o autor faz diversas observações sobre a ação da plutocracia na base do governo solapando todas as ações imperiais para modernizar o país. A segunda linha argumentativa alencariana diz respeito ao mundo escravista e está registrada em seus romances, entre eles, O trono do ipê e Til.

As consequências do escravismo brasileiro todos já sabem: medidas meramente paliativas para resolver um problema espinhoso para o governo monárquico, tendo em vista que na cidade do Rio de Janeiro, a maior parte da população era de africanos escravos ou forros, portanto colocar essa população toda em liberdade traria problemas seríssimos para a Monarquia naquele momento. Libertar os cativos, transformando-os em mão de obra assalariada, seria o ideal na época em que o país dava os primeiros passos em direção à uma industrialização tardia? O mundo científico do presente dá conta de explicar que não foi essa a saída adotada com impactos profundos no Brasil do século seguinte, sobretudo para a população oriunda do escravismo, ou seja, os descendentes de africanos escravizados por mais de trezentos anos. Os ex-escravos não foram indenizados ou receberam nenhum tipo de estímulo para se tornarem trabalhadores com salários mensais, enquanto o governo monárquico e posteriormente o republicano estimulava a vinda do imigrante vendendo-lhe mil possibilidades. Ao ex-cativo restou-lhe apenas continuar nos locais em que foi violentamente agredido em sua condição humana, guardando dentro de si e da sua subjetividade aqueles momentos de horror padecido nas mãos de escravagistas empedernidos ou rumar para a área urbana, indo residir nos escombros e periferias daquelas localidades, trabalhando sempre nas piores condições, recebendo os mais baixos salários – quando não havia a manutenção do escravismo através de pagamento escusos como casa e comida. Há uma vasta literatura sobre esse processo de eliminação da identidade do africano que, quiçá toda agressão recebida durante os anos de cativeiro e pós-abolição, continuou aculturando o seu algoz. Um exemplo deste processo pode ser encontrado na música, na culinária e nos traços estéticos que sobressaem à mão de ferro do descendente de escravagista que mantém o vício dos pais através do aviltamento e de ditos jocoso e do famigerado “você sabe com quem está falando?”

Tendo essas rápidas premissas em caráter introdutório, fica-me a pergunta: como ser de esquerda num país que ainda não se tornou capitalista, já que seus integrantes, mesmo tendo uma relação pautada em categorias sociais, se comportam como se estivessem ainda nos anos finais do escravismo e da Monarquia? Será que o Brasil foi, de fato, algum dia uma Nação capitalista e meritocrática? Há vários trabalhos nessa linha tentando encontrar respostas a essa e outras interpelações, mas para o escopo nesse singelo artigo reflexivo, entendo que o país não foi, em seu início republicano e nem anterior, uma sociedade pautada na produção e troca de mercadorias, tendo em vista sua vocação agrícola escudada no exploração africana sem nenhuma forma de pagamento, exceto as chibatadas desferidas nas costas daqueles que se rebelavam contra a sua situação de cativo, açoitado diariamente em sua condição de humano transformado em mercadoria, seja para gerar valor a partir da lavoura ou fornecer prazeres sexuais a escravagistas e sua prole de ensandecidos, patriarcais e machistas e estupradores – cultura que ainda pode ser vista nestas primeiras décadas do século XXI, basta dar uma olhada nos índices de ocorrências policiais e violências contra a mulher, portanto, nada disso são aleivosias deste que vos escreve, caro leitor.

Se ao africano e seus descendentes foi, desde o início, negado a possibilidade de se assalariarem, através do qual poderia se pensar num planejamento econômico, inclusive na emancipação futura dos filhos a partir da observação de um dos elementos constitutivos da cidadania, isto é, o direito social composto pelos direitos a participação na renda gerada no país, aposentadoria digna e educação, entre outros, como é que este poderia se constituir em proletário urbano – para pensar na dicotomia marxiana capital e trabalho; burguês e proletariado? Se ao ex-escravo foi vetado a possiblidade de imaginar e construir os dias vindouros, então não é possível pensar na possibilidade de o Brasil vir a ser um país capitalista, nos moldes demonstrado por Adam Smith (1723-1790) em seu livro A riqueza das nações. Todos são cônscios de que somente é possível construir um amanhã social a partir de investimentos pesados em educação – elemento fundamental no gozo pleno de cidadania. Há muitas pesquisas indicando que esse setor foi pouco estimulado, de modo a que todos os libertos, bem como filhos de homens brancos que viviam de “favor”, conforme Maria Sylvia de Carvalho Franco nos apresenta em sua clássica obra Homens livres na ordem escravocrata. Se no ontem a educação de qualidade foi negada ao ex-escravo, no presente o que é oferecido às categorias de baixo da pirâmide social é pífio e irrisório, impossibilitando muitas crianças, adolescentes e jovens acalentarem dias melhores a partir dos processos educacionais e cognitivos. Desta forma, no momento em que a sociedade se encontra em plena revolução tecnológica 4.0, o Brasil ainda se debate por questões caquéticas do século XIX, justamente porque os problemas, feitos cadáveres insepultos, continuam a dar conta da conduta dos homens em sociedade e as relações ainda são pautadas em princípios norteados pela relação Casa-grande e Senzala.

Se ainda se está no Brasil Oitocentista, como é que pode ser pensado um projeto para o país, tendo como perspectiva o vislumbre esquerdista? Lembrando que o credo adjetivado como sendo “esquerda” diz respeito ao desejo de que a sociedade se torne mais igualitária e as leis devam ser observadas, por exemplo, que os dispositivos constitucionais brasileiros sejam observados, principalmente aqueles que dizem que todos são iguais perante a Carta Magna. Mas será que é preciso adjetivar-se enquanto sujeito de esquerda, que defende ideais que se associam a um princípio socialista, para dizer que um país somente será democrático quando diminuir ao extremo suas desigualdades sociais? No caso de nosso país essas desigualdades são profundamente marcadas pela forma como a abolição da escravidão foi feita, ou seja, pelo alto, sendo que os cativos foram lançados à rua, à miséria e sujeitos a todo tipo de vicissitudes que o mundo pudesse lhes ofertar. Como seus ancestrais foram trasladados para cá como mercadorias humanas sob o julgo do Estado colonial e tratados como tais, quando foram libertos, seria de responsabilidade deste mesmo Estado dar-lhes guarida ou auxilio na transposição do trabalho escravo para o assalariamento, mas não foi o que aconteceu, conforme nos atesta a historiadora Célia Maria Azevedo em seu trabalho Onda negra, medo branco. “Diante dessa situação, impõe-se a pergunta clássica, […] que foi formulada muitas vezes, […] por gente politicamente muito diferente: que fazer?” (FAUSTO, Ruy. Caminhos da esquerda: elementos para uma reconstrução. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 80).

Encerrei o parágrafo anterior com a interpelação reproduzida pelo filósofo brasileiro, justamente porque seu livro diz respeito ao papel de uma esquerda brasileira na atual conjuntura, levando sempre em conta a herança senzaleira que ainda reina entre nós feito cadáver insepulto. Sendo assim, como pensar alternativas e saídas para o Brasil tendo sob si esse pesado fardo senzaleiro? Parece-me que esse é o desafio, antes que determinados incautos, sem o devido conhecimento, venham dizer que a esquerda, se é que ela chegou a existir algum dia entre nós, perdeu a parada e não conseguiu realizar o sonho duma pequena classe média que é o de ascender socialmente a ponto de fazer frente aos sujeitos que compõem os degraus mais altos da escada social. Senão vejamos: os anseios desses indivíduos que lutam para deixar o sopé da pirâmide social é apenas o de consumir bens que possibilitem um grau maior de representatividade social, como por exemplo, o automóvel de última geração; fazer viagens de turismo, mesmo que seja dentro do pais e de preferência de avião. Quando o escravo deixa de ser escravo e, mesmo tendo uma qualificação semelhante ao do europeu, quem ficaria com a vaga oferecida? Estou pensando lá no longínquo começo do século XX. A resposta é unânime: o europeu. Transpondo aquele período para este do século XXI, qual é o grande problema que tem levado uma categoria social ressentida ao campo do reacionarismo travestido de conservadorismo? Essa é a pergunta que pretendo responder no próximo texto.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor do ensino superior e médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília: e-mail: gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

 

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