Cidadania: voto consciente ou vale tudo

Gilberto Barbosa dos Santos

 

A sociedade brasileira chega à reta final de mais um pleito na qual os brasileiros escolherão os representantes nos Executivos e Legislativos dos mais de cinco mil municípios brasileiros. Até ai nada de mais, mesmo porque, a cada 24 meses, o cidadão é chamado às urnas para externar o seu pensamento político e, porque não, ideológico – mesmo que a ideologia passe longe das legendas que se configuram mais como feudos partidários do que realmente agremiações nas quais seus filiados discutem os rumos que gostariam de ver a Nação tomar quando chegarem ao poder [sabe-se que as ideias, na maioria das vezes, escudam-se em projetos pessoais e, quiçá, algumas experiências aqui e ali, desejos atrozes coadunados com uma simbiose ardente de se locupletar com o dinheiro público].

Bom! O externado acima não é novidade para ninguém e se isso é fato, tendo a crer que sim, então por que levar aos meus leitores semanais mais uma reflexão sobre mais do mesmo, isto é, escrever sobre o que é cônscio do cidadão com cidadania e, em partes, dos sem cidadania? Responder a essa interpelação não nos – colegiado – parece ser tarefa complexa, contudo, o que se observa é um nível de desconhecimento da legislação brasileira, principalmente no que diz respeito às instâncias superiores da Justiça, o que possibilita uma miríade de discursos inflamatórios, cujas consequências podem ser nefastas para toda a coletividade. Mas qual será a gênese de tais verborragias palanqueiras atreladas a um grau elevado de alienação do eleitorado brasileiro? Nova interpelação, que penso ser mais intrincada, pois requer um quantum do conhecimento histórico desse país, cujo ponto de partida esteja na formação do Estado brasileiro e, ai, há uma quantidade infindável de análises sociológicas, antropológicas, históricas e políticas que possibilitam ao cidadão de hoje compreender porque muitos eleitores se deixam levar pelo canto da sereia que, associado a apelos midiáticos, objetiva ludibriar o indivíduo que desconhece os bastidores e as mutretas que germinam nas sombras do poder.

Mas já que formulei dois questionamentos para a manhã de hoje e à última reflexão antes da eleição do próximo domingo, então, me coloco à tarefa de tentar equacioná-los objetivando sempre o esclarecimento daqueles que me leem semanalmente aqui nas páginas desse periódico. Posto isto, começo pelo que considero ser o exercício pleno da cidadania escudado pela trindade de direitos fundamentais, conforme já venho aventando aqui há algum tempo: os direitos civis, os sociais e os políticos. Os três níveis encontram-se em pleno funcionamento na sociedade brasileira, portanto, não tem o que se analisar sobre a sua prática, mesmo porque as leis vigentes em nosso país, quiçá o âmbito hermenêutico, atingem indistintamente a todos. Ledo engano quem pensa dessa maneira. A história recente do Brasil está recheada de exemplos que indicam o contrário, isto é, a letra fria da lei tem caminhos tortuosos até chegar a sua fase de execução final.

Não é tarefa simplória compreender questões complexas como essas e o problema endêmico que ainda grassa o nosso país, marcado profundamente por uma prática escudada na caquética mania da política do beija-mão amplamente difundida durante o Segundo Reinado (1840-1889) que, mesmo com o advento da República em 1889, não se apagou dos costumes brasileiros, conforme já apontei em meu livro O sentido da República em Esaú e Jacó e também em minha dissertação de mestrado que discute a temática, além de ter abordado em outros artigos científicos que publiquei em periódicos universitários. Se essa conduta corriqueira em nossa sociedade, marcada pela relação entre povo e governo – para não dizer eleitor e eleito – como então dizer que os três direitos fundamentais, que escoram a cidadania, estão funcionando plenamente? Em linhas gerais, entendemos por direito civil aquele referente à vida, à propriedade, à igualdade perante a lei. “Eles se desdobram na garantia de ir e vir, de escolher o trabalho, de manifestar o pensamento, de organizar-se, de ter respeitada a inviolabilidade do lar e da correspondência, de não ser preso a não ser pela autoridade competente e de acordo com as leis, de não ser condenado sem processo legal regular”, é o que nos informa o historiador José Murilo de Carvalho em seu livro Cidadania no Brasil: o longo caminho. Sendo assim, caro leitor, os direitos civis não podem ser trocados por vale isso e vale aquilo, contudo, o escritor russo, Fiódor Mikhailovich Dostoievski, afirmou certa vez que o ser social não é capaz de tolerar a própria liberdade, estando, portanto, suscetível a trocá-la pelo líder que lhe garanta pão e segurança. O Império Romano abusou dessa conduta com a famigerada prática do “pão e circo” enquanto mantinha a massa amorfa empobrecida, pestilenta, alienada. Lamentavelmente essa forma de se manter o povo dominado perdura até esse Terceiro Milênio, mesmo com a decadência romana e a consolidação do cristianismo como ideologia religiosa ocidental e forma de governo.

Voltando ao universo dos direitos no Brasil, temos o social que garante ao cidadão cônscio a participação na riqueza coletiva. Está incluso ai “o direito à educação [portanto, não é uma concessão], ao trabalho, ao salário justo, à saúde [não pode ser promessa de palanque], à aposentadoria”. De acordo com Carvalho, “a garantia de sua vigência depende da existência de uma eficiente máquina administrativa do Poder Executivo”. Ao pensar no Brasil e seus aparelhos burocráticos a partir de uma perspectiva weberiana, em que existe uma vocação para desempenhar tais funções, se observa que o problema aqui é mais complexo, já que, ao percorrer a história do Brasil levando em conta os registros que se tem, como por exemplo, as obras políticas do escritor José de Alencar, mais especificamente suas Cartas de Erasmo dirigidas ao Imperador D. Pedro II, é possível apontar que o presente burocrático nacional está fortemente marcado por uma herança aristocrática lusitana que data da criação das instituições e organismos que dariam sustentação à Família Real aqui no Brasil após a sua chegada em 1808. Acrescente-se a esse fenômeno a casta de plutocratas que, acostumada a enriquecer as expensas dos cofres públicos e do trabalho alheio – para não dizer uma espécie de escravagismo pós-moderno já que escudado no vácuo estomacal daqueles que não tem nada, exceto a sua capacidade de serem explorados de forma inumana para saciarem a fome que ronda seus casebres e palafitas – corrompe aqueles servidores suscetíveis a tais práticas olvidadas por sujeitos sociais que desconhecem plenamente seus direitos e deveres.

Por fim os direitos políticos. Eles dizem respeito à participação do cidadão no governo da sociedade e, no caso do Brasil, isso se dá através das escolhas de seus representantes e, é ai que reside o perigo, pois ao receber uma educação pífia, o indivíduo tem carências significativas para compreender as artimanhas que os postulantes à representante da coletividade tramam para se manterem no poder. Diante disso, o eleitor fica exposto ao canto da sereia que emana do alto dos palanques eleitorais espalhados pelo Brasil afora, principalmente quando a massa fica abaixo e os pretendentes no alto dos palcos montados para ludibriarem o eleitorado, conforme Machado de Assis apresenta no capítulo Ideia fixa em seu romance Memórias póstumas de Brás Cubas. Posto isto, é preciso que todos tenham noções claras para apertar o sim no próximo domingo.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, sociólogo, professor no ensino superior e médio em Penápolis. Pesquisador do Grupo Pensamento Conservador – UNESP e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS-UNESP. Escreve às quintas-feiras neste espaço: www.criticapontual.com.br. E-mail: gilbertobarsantos@bol.com.br, gilcriticapontual@gmail.com, e social@criticapontual.com.br.

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