Caminhos e percursos entre o real e o ficcional

Gilberto Barbosa dos Santos

 

A escritora estadunidense Raven Leilani, em seu romance Luxúria (São Paulo: Companhia das Letras, 2021), cujo enredo enfoca as relações inter-raciais nos Estados Unidos, diz, através de sua enunciadora, que “ninguém quer o que ninguém quer” (p. 17). Essa afirmação é assaz interessante quando se pensa o lugar da literatura num mundo globalizado, robotizado e desumanizado em que se vive no momento no qual a pandemia ainda não dá indicativas de que deixará a humanidade em paz. Neste sentido, me parece que os olhares da também escritora árabe Jokha Alharthi e autora do romance Damas da Lua, são significativos, pois, segundo ela, “a literatura cria uma nova realidade, paralela à primeira. Considerar isso um espelho não só anula seu papel ficcional e estético, mas trata a escrita como simples reprodução da realidade e não como o agente que a reconstrói”. Diz ainda ser importante ter em mente que “a literatura lança as perguntas, mas não as responde. E o mais importante que ela nos ensina é evitar a superficialidade e julgar sem pensar, sabendo que as coisas são mais complexas do que parecem” [Folha de S. Paulo, 15/08/2020].

Creio, meus caros leitores, que as duas abordagens são pertinentes, principalmente se acrescentarmos a elas algumas colocações, como por exemplo, a feita pelo cientista político e diplomata, Sergio Paulo Rouanet, em seu livro As razões do Iluminismo [São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 13]. “A verdadeira razão é consciente dos seus limites, percebe o espaço irracional em que se move e pode, portanto, libertar-se do irracional”. Mais adiante, o autor afirma que é possível, “sem exagero, falar na ascensão de um novo irracionalismo no Brasil. Em todas as trincheiras e em todas as frentes, a razão está na defensiva. Não é a primeira vez que isso ocorre” (2004, p. 124). Parece-me que essas duas outras colocações são importantes para se tentar entender o mundo, o país, o estado, enfim, o local que personifica o global, como disse em uma de suas significativas intervenções o sociólogo Octavio Ianni (1926-2004) durante a disciplina Teorias da Globalização nos meus tempos de UNICAMP. Mas o que tem a ver o primeiro com o segundo parágrafo dessa reflexão, deve estar se pergunta o leitor que me acompanhou até aqui.

Começo uma tentativa de resposta recorrendo ao filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) para quem “o poeta só é poeta porque se vê cercado de figuras que vivem e atuam diante dele e em cujo ser mais íntimo seu olhar penetra” [O nascimento da tragédia ou Helenismo e Pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 59]. Outro pensador que pode contribuir para a compreensão desta interface sinérgica entre literatura e comportamento social, ou melhor, entre ficção e realidade é Aristóteles. Segundo ele, “o que foi dito se apreende que o poeta conta, em obra, não o que aconteceu e sim as coisas quais poderiam vir a acontecer, e que sejam possíveis tanto da perspectiva da verossimilhança como da necessidade. O historiador e o poeta não se distinguem por escrever em verso ou prosa; caso as obras de Heródoto fossem postas em metros, não deixaria de ser história; a diferença é que um relata os acontecimentos que de fato sucederam, enquanto o outro fala das coisas que poderiam suceder. E é por esse motivo que a poesia contém mais filosofia e circunspecção do que história; a primeira trata das coisas universais, enquanto a segunda cuida do particular. Entendo que tratar de coisas universais significa atribuir a alguém ideias e atos que, por necessidade ou verossimilhança, a natureza desse alguém exige; a poesia desse modo, visa ao universal, mesmo quando dá nomes a suas personagens” [Poéticas. São Paulo: Abril Cultural, 1999, p. 47].

Posto esses olhares um tanto quanto poéticos e outras filosóficos, fico cá pensando por que cargas d’água o Brasil vem sofrendo com as investidas de um populismo ora messiânico para, de maneira atroz, se tornar econômico e em outros momentos sebastianista em que sempre se promete à plebe – para pensar numa nomenclatura medieval, pois o homem do presente com medo do futuro incerto volta à sua face para o passado já que o anjo da história lhe apresenta um futuro fruto das consequências das escolhas equivocadas do ontem – que tudo será diferente e que todos deixarão o universo da miserabilidade em que se encontram. Interessante notar que o desejo de retornar a um pretérito, mesmo que distante como o período medieval, não é para tentar equacionar as decisões equivocadas adotadas naquelas épocas, como por exemplo, a ideia geocêntrica aliada ao antropocentrismo – tese amplamente derrubada e comprovada pela ciência tão defenestrada no presente por líderes políticos e de outras designações mais interessados em manter a patuleia alienada, porém contribuinte de certos valores que me faz reportar às “indulgências” que motivaram a rebelião do monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546) que se opôs ao poderio da Igreja concentrado na venda de perdões terrenos sob a promessa de ingresso no reino dos céus. Mas isso foi lá no medievo, todavia, a razão no presente vem sendo atropelada por desejos atrozes e movimentos muito afeitos às querelas entre um pretérito não muito distante e um futuro totalmente incerto que vem sendo engolido por um presente que se dissolve no instante seguinte à sua criação.

Neste sentido, especulo aqui do meu terminal de trabalho, como seria um ficcionista confeccionando seus enredos a partir da realidade que surge e desaparece à sua frente em questões de microssegundos. Seria uma tentativa de recriar 1984 [São Paulo Companhia das Letras, 2019], clássico de George Orwell (1903-1950)? Creio que não seria esse o caminho mais acertado, mesmo levando em conta que as pessoas do presente, seja aqui no Brasil ou em algumas partes do globo, conforme apresentou os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt no livro Como as democracias morrem [Rio de Janeiro, Zahar, 2018] estão mais propensas a escolher líderes que possam garantir pão e segurança, confirmando o que disse certa vez o escritor russo Fiódor Dostoievski (1821-1881). Neste sentido, estariam propensas a deixar de lado a liberdade para não precisarem pensar no dia seguinte, pois tudo já estaria acertado, inclusive com o estético direcionando as relações humanas como acontece na atualidade performática das redes sociais em que os sujeitos sociais podem construir outras personagens para existirem como se faziam nas teledramaturgias antigas, cujos dramas atravessam boa parte do ano mexendo com o imaginário dos telespectadores. Desta forma, o mundo virtual de hoje, que não existe, substituiu em boa parte da vida dos seres humanos a televisão dos anos 60/70 e 80 do século passado. Sendo assim, creio meus caros leitores, que não há como escapar desse mundo fantasmagórico em que as pessoas desejam viver tudo ao mesmo tempo agora, numa agonia alucinante provocadora de tantas moléstias como disse Edgar Morin em seu livro Cultura de massa no século XX: Necroses e neuroses [Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2018]. Enfim, nessas linhas objetivei apenas propor uma reflexão que deverá, a exemplo do que diz o semiólogo Umberto Eco (1932-2016) em seu livro Seis passeios pelos bosques da ficção [São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 9], ser completada pelos meus leitores a partir de seus pontos de vistas, ou visões de mundo.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

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