Brasil: do parnasiano Olavo Bilac ao Bandeira

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Entre tantos assuntos que poderia conversar com vocês, meus caros leitores, nesta manhã primaveril de setembro, eu escolhi tratar de uma questão poética, mais especificamente o parnasiano Olavo Bilac (1865-1918). Esse poetizador, que é considerado um grande nacionalista, abolicionista e propagador do serviço militar, confeccionou uns versos que me fazem pensar sobre os motivos que ainda o país permanecer atolado no atraso, na arrogância, na incompetência, no ressentimento. Marcas indeléveis que possibilitam a qualquer brasileiro, dado às sensibilidades sociais, observar. Uns podem até negar, mas outros que, mesmo crendo no futuro a partir da beleza de seus sonhos, não fecham suas janelas às misérias que percorrem as ruas das mais de cinco mil cidades brasileiras. Pode-se falar da fome que fareja os órgãos adjacentes aos estomago do indivíduo individualizado. Mas o que dizer da miséria humana, aquele que é vigente a partir d’alma dum corpo que se expressa a partir da sua prepotência e tosca verborragias segundo as quais se fez isso e aquilo, mas é incapaz de estender os braços a quem procura abrigo e proteção, bem como um prato de comida para lhe aplacar a fome?

É justamente essa fome que encontrei no parnaso Bilac externados nas linhas que compõem o poema Os pobres. Os versos que começam enfocando o caminhante, descalço pedindo compaixão com o seu vácuo estomacal, me fizeram recordar outras passagens do romance Seara Vermelha, do escritor baiano Jorge Amado (1912-2001) e também do poema O bicho, de Manoel Bandeira (1886-1968), em que um pequeno trecho foi usado para que os vestibulandos de 1989 redigissem suas redações objetivando uma das vagas na UNESP em 1990. Eu, na ocasião, optei pelo fragmento constante no capítulo IV – Ideia fixa, do romance machadiano Memórias póstumas de Brás Cubas. Mas isso foi lá no final dos anos 80 do século XX. Para hoje, abordarei os versetos de Bandeira, juntamente com as enunciações de Bilac. O que dói mais no vivente: vir um ser que passa fome e dizer-lhe que a culpa é sua ou assistir um semelhante revirando lixo em busca de comida? É interessante analisar a hipocrisia humana a partir dessas duas poéticas e a suposição de que, socialmente, o sujeito é responsável pela sua miséria econômica, quando se sabe que há um Estado que arrecada muito e gasta mal, tributando as pessoas que se encontram nos degraus de baixo da catedral social – só para lembrar o estigma dos pés-rapados e quem ocupava os primeiros bancos das igrejas barrocas do Brasil seiscentistas, além de ser um universo fortemente marcado pelo paradoxo entre cristianismo e escravismo: duas formas incongruentes e desconexas num mundo de miserabilidades aqui e ali. Como se dizer cristão e se comprazer com a violência da escravidão?

Se nos versos encontramos os pobres que perambulam sozinhos pelas ruas das grandes e pequenas cidades, tendo como leito a calçada e a fome como única parceira, há nas linhas tecidas por Bandeira a completa tragédia humana que nenhuma política ou líder demagógico foi capaz de equacionar. Por que será? Como na enunciação do cantor e compositor [Antônio Carlos] Belchior (1945-2017), enquanto os aparatos repressivos de Estado julgam a partir do que imaginam enxergarem e atirando, ceifando vidas de inocentes e responsabilizando as famigeradas “balas perdidas” que só atingem os pobres e descendentes de escravos, há nos apartamentos, mansões e palácios, como aqueles retratados pelo escritor João Silvério Trevisan em seu romance A idade de ouro do Brasil, tramas em que os participantes contam seus metais e como o dinheiro, arrecadado entre os pobres por meio de tributos, taxas e impostos, será compartilhando entre a camarilha de plutocratas que bailam composições letais executadas por orquestras burocratas regidas por maestros partidários oriundos de feudos coronelísticos e senzaleiros dum tempo que a modernidade e a tecnologia não foram capazes de dizimar no presente, tamanho o desprezo que a sociedade brasileira tem pelo conhecimento e pela educação. Diante desse quadro dantesco, é que uma teologia pautada nas falcatruas e antessalas de grandes conglomerações religiosas, vem ganhando espaço assassinando a democracia e a laicidade do Estado brasileiro sem precisar dar um tiro se quer. Nesse campo, o projétil perdido não aparece, mas sim uma “palavra” distorcida, usada para desvirtuar os propósitos anunciados por uma certa enunciação poética proferida por um certo poeta que ousou questionar as suntuosidades de determinados líderes.

Mas deixando essas mazelas sociais do presente para me concentrar em Bandeira e Bilac e, de quebra, chamando Carolina Maria de Jesus (1914-1977) para conversar, pergunto-vos meus caros leitores, o que tem a ver o poema Os pobres [Olavo Bilac]; O bicho [Manuel bandeira] e Quarto de despejo [Carolina Maria de Jesus]? Será que todos não teriam começado no romance naturalista O cortiço, de Aluísio Azevedo (1857-1913), ou melhor, no poema Navio Negreiros, de Castro Alves (1847-1871)? Acho que a embarcação do poeta dos escravos diz muito sobre outro verso deste baiano, segundo o qual, a praça é do povo, assim como o céu é do Condor. Se isso é fato, então a praça deveria dar voz ao brasileiro, mas este resolveu ficar em silêncio, fingindo não ver o andarilho esfomeado; optou por ignorar o semelhante que come lixo e o morador dos morros e casebres que há mais de dois séculos estampam a hipocrisia humana cantada em prosa e verso por políticos a cada eleição e olha que já está aproximando mais uma e as prosélitas vociferações de mais isso e aquilo já ganharam as redes sociais e linguagens semióticas em que se coloca uns como candidatos e outros já eleitos. Àqueles que conhecem um pouco do riscado, entendem que uma palavra postada de uma forma, está dizendo muito sobre determinados posicionamentos que não deveriam constar em folhas impressas. Mas esse é o Brasil: pessoas que sabem ler, mas desprezam seus escritores, poetas e suas respectivas enunciações para acreditarem em mensagens, nem sempre verdadeiras, difundidas por meio de aplicativos eletrônicos, conforme informou a jornalista Patrícia Campos Mello em seu livro A máquina do ódio.

De volta aos parnasos Bilac e Bandeira, cujos nomes iniciam-se com a letra B de Brasil, ambos retratam o ser físico e suas misérias, contudo, é possível buscar as causas de tantas mazelas sociais. Se o moribundo que cisma em se manter vivo, quiçá o desejo atroz do estômago em devorar os demais órgãos, estiver nas terras que legou enunciações magnânimas, a situação terá fulcro na não existência da cidadania, mesmo as três formas de direito que consubstanciam à condição do brasileiro nesse campo de indivíduo social existirem a partir da letra fria da lei, todavia, de duvidosa prática, pois o ser que se quer ser enquanto ente atuando na sociedade em que existe, é cônscio de que os seus marcadores sociais ainda são aferidos a partir de um pertencimento estamental, portanto, discordo dos meus amigos que vivem propalando que, aqui entre nós, o neoliberalismo dá as cartas. Entendo que o primeiro processo é entender se de fato o país foi um dia capitalista, liberal e se aqui algum dia se viveu plenamente a democracia? Claro que quanto as respostas, todos já sabem: há de fato uma ordem estamental na qual o próprio sistema se encarregou em não dissolver quando foi decretado o fim do escravismo acompanhado da queda da Monarquia e o surgimento da República. Voltarei à temática em momento alvissareiro. Por ora basta atentar-me com mais acuidade aos versos de Bilac e Bandeira que a propósito são reflexivos.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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