Brasil: a bússola desmagnetizada

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Todos sabem que a bússola é um instrumento de orientação geográfica, desenvolvido há mais de quatro mil anos, tendo como escopo sintonizar o seu usuário com o espaço físico. Ela tem uma agulha magnetizada que sempre indica o Polo Norte do orbe terrestre. Pois bem, essa informação, aliada a alguns instrumentais analíticos, será usada aqui de forma alegórica – figura de linguagem muito usual em diversos momentos discursivos do ser humano, entre eles, as enunciações literárias – dando a tônica das narrativas desta manhã. Meu objetivo aqui, como em outros textos, sempre é o de auxiliar o leitor a compreender, mesmo que seja a partir dum pequeno quantum, o funcionamento da sociedade brasileira, pautada pela política do favor, do neocoronelismo, do patrimonialismo, da excessiva burocratização do Estado – prática talvez influenciada por comportamentos sociais desde a Monarquia, segundo a qual, o indivíduo espera tudo do Estado e, este por sua vez, precisa se agigantar para dar conta das demandas populacionais, muitas delas sustentadoras de condutas populistas, como a que o brasileiro atento ao trebelhar política está assistindo no momento.

Feitas essas ressalvas iniciais, me enveredo pelo campo das ferramentas que podem sustentar as linhas que se seguem. A primeira eu retirei do livro Controle social da Administração pública, mais especificamente no capítulo Controle social da administração pública – entre o político e o econômico. Em determinado ponto de sua enunciação, o economista e professor do Departamento de Administração Pública da UNESP-Araraquara, Valdemir Pires, afirma que “os problemas da representação de interesses ou da relação agente-principal sempre marcaram as relações políticas republicanas e democráticas, surgindo apenas como germe em relações políticas que não merecem esses adjetivos. Ou seja, no campo da política, desde que se concebe claramente a distinção entre interesse público e interesses privados, surgem os dilemas da representação. E as soluções propostas desde o início repousam sobre dois pilares: a crença no altruísmo de quem assume um cargo ou função pública (sintomaticamente, o homem bom assume, em tempos não tão remotos, o lugar do representante de Deus na Terra) e, na falta ou insuficiência deste, na criação de mecanismos de controle, entre os quais a separação entre os poderes, para que um contenha o ímpeto do outro para manipular ilimitadamente as decisões e os meios (mesmo os homens bons precisam de freios para não cair nas garras do mal…)”.

O segundo mecanismo é uma entrevista, entre tantas outras, concedidas pelo economista Antonio Delfim Netto – professor da USP e conselheiro para assuntos econômicos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) – a um jornal de circulação nacional que muitos asseclas do ex-mandatário gostam de adjetivar como integrante do PIG [Partido da Imprensa Golpista]. Deixando essas questões de foro ideológico para outro momento e se concentrando em um pequeno trecho, porém, significativo da fala do ex-ministro do Planejamento, interessa salientar que, Segundo o entrevistado, “o setor privado anulou a única força que controla o capitalismo, que é o Congresso. Não é simplesmente que o Estado e o setor privado tenham feito um incesto, produzindo um monstrengo”. Sobre o capitalismo, Delfim Netto explica que o sistema “é sempre uma coisa nova. Mas exige a propriedade privada, principal instrumento de acumulação de riqueza, que produz a ‘malaise’ [mal-estar, incomodo, indisposição] que estamos vivendo. E aí ele dá a volta em cima de si mesmo. Vem uma revolução e começa do zero”.

A terceira e quarta ferramentas, advém duma entrevista concedida recentemente ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad e intitulada Geraldo Alckmin é a continuidade do governo Temer sem Temer; e um artigo que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fez publicar no mesmo jornal em junho do ano passado que recebeu como título Apelo ao bom senso. Do primeiro, retiro um pequeno fragmento, levando em conta o espaço aqui e o tempo de meus leitores. O ex-prefeito do PT – indicado como plano B da legenda caso o arauto do petismo nacional [se a legislação for respeitada] não seja candidato. Segundo ele, “o empresariado brasileiro precisa se educar para a democracia. ‘Eles [os empresários] têm dificuldade com a modernidade’”. Do texto de FHC retiro um excerto que, para o meu objetivo aqui é significante, pois, segundo ele, “com 14 milhões de desempregados no país, urge restabelecer a confiança entre os brasileiros para que o crescimento econômico seja retomado. A confiança e a legalidade devem ser nossos marcos. A sociedade desconfia do Estado, e o povo descrê do poder e dos poderosos. Estes tiveram a confiabilidade destruída porque a Operação Lava Jato e outros processos desnudaram os laços entre corrupção e vitórias eleitorais, bem como mostraram o enriquecimento pessoal de políticos”.

Claro que há muitos outros conteúdos nessas narrativas que citei e apontei parte de suas enunciações, todavia, o que tem em comum em todas elas? Indicações, segundo as quais, existem simbioses nefastas entre o setor produtivo brasileiro e o próprio Estado, além de muitos discursos que satanizam o capitalismo, contudo, nada que permita o avanço de uma participação racional do Estado – esse grande Leviatã abstrato – brasileiro, carcomido pela plutocracia atrelada a uma burocracia aristocratiza, conforme já apontou o escritor José de Alencar (1829-1877) em seu livro Cartas de Erasmo ao Imperador e também o literato Machado de Assis (1839-1908) em seu romance Memórias póstumas de Brás Cubas. Até ai nada de mais, até porque aponto essas abordagens sempre, sendo assim, talvez os meus leitores estejam esperando algo diferente ao chegarem neste ponto de minha narrativa semanal. Pois bem, se é assim, então creio que o sujeito que se quer social precisa compreender – antes de se enveredar pelo mundo da política, seja ela partidária, eleitoral ou meramente opinativa – qual é a sociedade que ele pretende edificar e, a partir dai ter um Estado equilibrado em que as necessidades dos indivíduos, que pagam seus tributos, sejam contempladas.

Será que o caminho da democracia liberal é o ideal nesse momento em que há, conforme o economista Márcio Pochmann apontou em recente passagem por Penápolis, uma enorme pejotização e avalanches de microempreendedores no meio social? Bom! Se a resposta for positiva, então se enveredará pelo que se entende por democracia e por liberalismo. Claro que o brasileiro entenderá que o liberalismo nunca deu as caras aqui no Brasil e, quando aparece, adquire ares bizarros, pois tenta viver em harmonia com o sistema produtivo escravista, e este, por sua vez, inviabilizou o contato direto de uma massa, em sua maioria de escravos, com os processos eleitorais que sempre foram pautados pela fraude, as chamadas eleições a bico de pena. Desta forma, vê-se que a democracia é um artigo de luxo, bem como a adjetivação sociedade liberal. Esses dois processos estão longe de ditarem as regras sociais no país, por conta do tamanho do Estado criado à imagem e semelhança de uma Corte acostumada aos benefícios transladados para cá com a Família Real. Voltarei à bússola desmagnetizada em outra oportunidade.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor do ensino superior e médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gildassociais@bol.com.br; gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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