Beijo da autocracia na democracia

Gilberto de Assis Barbosa dos Santos

 

De acordo com o clássico da literatura inglesa, Romeu e Julieta, uma tragédia romântica escrita entre 1591-1595 envolvendo não possibilidade da realização do amor entre os dois porque as famílias dos pretendentes se odiavam. Essa narrativa, confeccionada pelo escritor inglês William Shakespeare (1564-1616) diz muito sobre a Florença italiana que surge nos finais da Idade Médica e início do mercantilismo, bem poderia ser útil para se pensar o momento periclitante que o Brasil e a democracia vem enfrentando no mundo. A primeira pergunta é: por que o povo, dito civilizado, está solicitando o divórcio desta democracia liberal e as liberdades garantidas constitucionalmente? Mas antes de tentar buscar uma resposta minimamente plausível, entendo ser necessário resgatar aqui duas questões postas pelo escritor brasileiro Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) em seu clássico Memórias póstumas de Brás Cubas (São Paulo: Ática, 1998). A primeira diz respeito ao capítulo IV – Ideia fixa. Nele o leitor encontrará uma enunciação alegórica que o transportará para o Brasil de outrora que, bem analisado, indica ser o responsável pela Nação do presente. “Quem não que ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras modestamente particulares, que se hasteiam a e flutuam à sombra daquela, e não poucas vezes sobrevivem? Mal comparando, é como se a arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo feudal; caiu este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castelã… Não, a comparação não presta” (MACHADO DE ASSIS, 1998, p.21).

A segunda problemática diz respeito ao conteúdo do capítulo LXVIII – O vergalho (1998, p. 100-101). Nesta enunciação, o narrador-defunto conta as peripécias do seu ex-escravo Prudêncio que espancava um africano na praça do Valongo – creio que cabe aqui uma explicação sobre o significado do nome daquele logradouro: quando os escravos chegavam do continente africano ficavam em quarentena em locais próximos às praias, aguardando os compradores, contudo, devido às péssimas condições de viagem, muitos morriam e eram enterrados na própria areia da praia em covas rasas que ficam expostas com a ação das mares, emitindo terríveis odores. No episódio do espancamento, Brás Cubas afirma que o seu ex-cativo adquirira um escravo para desforrar-lhe as surras que levara durante o seu tempo de cativo na família do narrador. Essa observação machadiana me reporta ao que afirmava o cientista social e professor da USP, Florestan Fernandes (1920-1995). Segundo ele, depois de alforriado o escravo, fazia-se necessário tirar a escravidão de dentro do escravagista. Portanto, essas duas enunciações presentes naquele romance, possibilita uma miríade de reflexões, contudo, vou me deter apenas na primeira, ou seja, a questão das bandeiras que se alimentam das migalhas que caem do alto do trono. Farei isso por diversas razões, sendo uma delas a que me possibilita pensar a questão, não somente em termos de Brasil, mas também no âmbito global em que um modelo de democracia liberal entrou em crise, proporcionando a ascensão de líderes autocráticos e populistas, conforme aponta o professor Yascha Mounk em seu livro O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo (São Paulo: Companhia das Letras, 2019).

Creio que para entender o presente da política global, faz-se necessário, mesmo que de forma lacônica, retroceder até o fim da II Guerra Mundial, quando o planeta foi dividido entre duas forças políticas antagônicas, marcado sobretudo pelo chamado Muro da Vergonha que separou a cidade alemã de Berlim em dois flancos: a Berlim Ocidental e a Berlim Oriental. Essa divisão durou até 1989, quando ocorreu o fim do conglomerado soviético, dando lugar à CEI (Comunidade de Estados Independentes) e, finalmente a devolução da Rússia aos russos e a toda sorte de autocratas e oligarcas. É interessante notar que, enquanto durou a Cortina de Ferro, a democracia ocidental não foi maculada ou questionada, entretanto, quando o oposto ao capitalismo caiu, os olhares deixaram de se concentrar na dicotomia Capitalismo versus Comunismo, se concentrando totalmente no desenvolvimento do mundo mercadológico que se expandiu através das diversas revoluções tecnológicas e em seus modos de produção, como os modelos fordistas, taylorista e toyotista. Esse desenvolvimento produtivo deslocou lentamente a mão de obra do chamado “chão da fábrica”, isto é, das atividades manuais e das máquinas para as salas de projetos e robóticas. Desta forma, o operário e os respectivos técnicos estão sendo lentamente substituídos por máquinas e o dinheiro deixando de existir em seu formado material, trafegando globalmente através dos equipamentos eletrônicos, como computadores, notebook, smartphones e demais celulares.

Se por um lado, o avanço tecnológico reconfigura o mundo fabril e financeiro, por outro, colapsa o modelo econômico forjado no final do conflito ocorrido na primeira metade do século XIX. A Europa estava totalmente destruída, necessitando ser erguida, mas como fazer isso? Será que o mercado daria conta de reconstruir os países? Não! Assim como aconteceu em 2008, o Estado foi o avalista e principal financiador do ressurgimento europeu através das políticas keynesianas, tendo como principal nome o economista John Maynard Keynes (1883-1946). Esse programa ficou conhecido como política do bem-estar social, ou melhor, welfare state keynesiano, colocando o Estado como principal motor da sociedade no que diz respeito às garantias mínimas para o sujeito viver num mundo reconfigurado pela guerra, inclusive do ponto de vista trabalhista e algumas garantias de empregabilidade e renda. Essas políticas eram implantadas em sinergia com sindicados e empresas, todavia, com o avanço do capitalismo em sua fase financista e global, todas as seguridades, construídas ao longo da segunda metade do século XX, paulatinamente foram retiradas e as empresas indo de país a país em busca de mais lucros para seus acionistas e de mão de obra barata. Deste processo passa-se a terceirização e o advento das franquias e comercialização das marcas, sem necessariamente haver uma ligação entre estampas e o mundo fabril. Esses procedimentos desestabilizaram a vida em sociedade, construída durante as três décadas seguintes ao fim do grande conflito que ceifou a vida de milhares de europeus e judeus.

Essas crises começam a se avolumar logo depois do fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e do capitalismo em sua fase estatal, que muitos chamam de comunismo. Ao eliminar o estatismo, essas sociedades imaginavam que herdariam o reino do consumo, como sempre alardeado pelo Ocidente em campanhas contrabandeadas para os países do Leste Europeu. Os primeiros a sentirem que o mundo real do capitalismo era bem diferente daquele propalado nos tempos de Cortina de Ferro foram os moradores de Berlim Oriental. Tanto é que nos anos seguintes à abertura e queda do muro, foi de lá que surgiram os primeiros movimentos ultranacionalistas e xenófobos, pois boa parte daqueles jovens, muitos com qualificação ineficiente, porém, dentro dos quadros soviéticos, sentiu-se alijada do mundo do trabalho por conta da chegada do imigrante, muitos oriundos dos países africanos e ex-colônias dos tempos do colonialismo oitocentista, entre elas as britânicas, francesas e belgas. Esses movimentos ganham força e engrossam as fileiras dos partidos de inclinações nacionalistas, se espalhando pela Europa na medida em que o desemprego estrutural aumenta, já que a tecnologia substitui lentamente o homem fabril por robôs e aquelas funções manuais são transferidas para países periféricos, nos quais as regulamentações trabalhistas são pífias ou quase inexistentes. Enfim, é esse o contexto em que os questionamentos à democracia liberal vão surgir ao longo das duas primeiras décadas do século XXI e irrigar as promessas eleitorais durante os processos de escolhas de presidentes de países, totalmente alinhados e exemplo de democracia, como os EUA. Lá, como na Hungria, na Turquia, Rússia e no Brasil, o eleitor esteve atrelado a modelos de autocracia escudados numa ideia de democracia nacionalista. Será que é possível dizer que essas práticas, umas já esmorecendo e outras ainda lutando para ficar de pé, podem decretar o fim da democracia, chamada liberal? Somente o tempo irá dizer, entretanto, pela movimentação das populações de várias dessas localidades, a existência nessas tentativas autocráticas não será nada fácil. Todavia, o mais significativo é, no presente, cada um repensar o modelo de país que deseja para si e qual sociedade deixará para as gerações futuras. E o capitalismo em sua fase financistas, resistirá a essas tentativas de golpes autocráticos? Ou terá que ser reinventado como fez a partir da crise global de 2008? Quiçá a quantidade de interpelações que formulei, entendo que, na condição de cientista social, o momento que o Planeta vem atravessando requer de todos, profundas reflexões sobre o modelo de vida carreado até agora e o que se busca daqui para a frente, depois que a pandemia arrefecer seu ímpeto mortífero. É preciso repensar o modelo econômico e quem sabe o desenvolvimento de uma ética racional visando o bem comum, dentro do que Max Weber (1864-1920) chama de ação social objetivando um determinado resultado.

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