Gilberto Barbosa dos Santos
A pergunta que me faço desde os primeiros dias de graduação em Ciências Sociais no campus da UNESP em Araraquara e, por não ter obtido resposta satisfatória, continua latente e me guiando nessas últimas três décadas: por que o Brasil, que deseja tanto ser moderno, continua atolado no passado monárquico e escravagista? Para tentar encontrar caminhos que me permita percorrer certos fatos históricos que marcaram profundamente a sociedade brasileira, deixando sequelas até o presente, recorri dois livros publicados em tempos distintos: 28 anos. Por ordem de ocorrência, o primeiro é o trabalho da antropóloga e professora da USP, Lilia Mortiz Schwarcz “Sobre o autoritarismo brasileiro” (Companhia das Letras, 2019); o segundo é do sociólogo e professor da UNICAMP, Marcelo Ridenti – foi meu professor e me orientou na pesquisa que culminou no meu TCC sobre os militares nos primeiros anos da República até o Movimento Tenentista, apresentado para a outorga de Bacharel em Ciências Sociais – Política pra quê? (São Paulo: Atual, 1992).
Para fins deste texto, do primeiro livro eu destaco esse pequeno fragmento que pode muito bem evidenciar a presença da Monarquia no universo republicano até essas duas primeiras décadas do século XXI, quando muitos acreditavam que o país teria deixado a categoria de subdesenvolvido ou em desenvolvimento para ingressar no clube formado pelos países de Primeiro Mundo. A autora aborda a questão nobiliárquica que, mesmo o Império não existindo mais, as formas de tratamento permanecem e podem ser vistas através do famigerado “você sabe com quem está falando”, conforme nos apresenta o antropólogo Roberto DaMatta em seu trabalho Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro (Rio de Janeiro: Rocco, 1997). A professora da Universidade de São Paulo diz que “além [dos] titulados e brasonados, convivendo no cotidiano do palácio real, uma entourage selecionada ocupava cargos e cumpria funções, compartilhando tanto das formalidades quanto da intimidade do imperador e garantindo assim um status diferenciado. Os conselheiros de Estado, fidalgo e oficiais das casas Real e Imperial, formavam, junto com a nobreza titulada, esse grupo especial que durante o Segundo Reinado [1840-1889] viveu, na América, uma nova versão da corte, só incomodada pelo sol de quarenta graus, mais próprio ao clima dos trópicos. No Brasil, os termos se confundiam e se dividiam. Na teoria, nobres eram aqueles que recebiam títulos por parte do imperador. Na prática, porém, o termo era mais elástico e flexível. ‘A corte’ podia significar o grupo de pessoas mais chegadas ao rei, e também os titulados. Designava, igualmente, ‘a corte do Rio de Janeiro’, tendo como referência o Paço de São Cristóvão. Nesse sentido, se pertencer ‘à corte’ – à corte carioca – era um direito relativamente amplo, ser titular, ser nobre, era um privilégio de poucos. A balança ficava nas mãos do monarca, o qual garantia para si a formação do grupo de aliados que orbitava, necessariamente, ao seu redor” (2019, p. 77). Posto isso, fico com a seguinte interpelação: existe ou não no “ar democrático brasileiro” do presente um querer autocrático beirando à outrora Monarquia eliminada em 1889?
Do segundo livro destaquei a seguinte passagem: “‘Política é o fim’, desabafa o personagem de uma canção de Caetano Velosos, saturado da política brasileira. Não é para menos, após séculos de colônia, dezenas de anos sob o Império escravocrata, outras décadas sob as oligarquias da República Velha, sucedida pela ditadura de Vargas. Em seguida o populismo, culminando em vinte anos de ditadura militar, que desembocaram nos governos Sarney e Collor, cômicos se não fossem trágicos. Depois de tudo isso, no meio de uma crise política, social, econômica e ideológica que se converte num pesadelo inacabado, como não concluir que, de fato, ‘política é o fim’? Diariamente aumentam a miséria, a criminalidade, o extermínio de crianças e adolescentes de rua, a irresponsabilidade no trânsito, o arrocho salarial, os assassinatos de líderes sindicais e políticos rurais, a agressão ao meio ambiente, o desrespeito aos direitos humanos e de cidadania. Deterioram-se as condições de educação e saúde públicas. Prevalece impunidade para os crimes de colarinho-branco. A corrupção penetra em cada poro da sociedade. Enquanto isso, elites governamentais aplicam suas receitas econômicas e sociais de cima para baixo, com os resultados que conhecemos. Os inúmeros escândalos, concorrências fraudulentas, negociatas de todas as espécies com o dinheiro público, políticos pobres que enriquecem da noite para o dia, o famoso ‘caixa 2’ para sustentar campanhas que garantem reeleições, o poder do dinheiro comprando corações, mentes e corpos, tudo parece um círculo vicioso e corrupto da política, onde quem pode mais chora menos. É a cada um por si e Deus por todos. Deus não é brasileiro? Um sambista dizia: ‘Deus dá o frio conforme o cobertor´[João Rubinato – Adoniran Barbosa]. E, por falar em Deus, certos parlamentares brasileiros aplicam à sua maneira à máxima de São Francisco de Assis, ‘é dando que se recebe’ – um favor ou um cargo público para cá, um voto no Congresso favorável ao governo para lá” (Atual, 1992, p. 1-2).
No primeiro caso, Lilia Moritz Schwarcz está trabalhando com o Brasil oitocentista para compreender o presente republicano, no qual, democraticamente, uma parcela considerável da população flerta com o regime de exceção que durou vinte anos, sem contar que desde o golpe que eliminou a Monarquia, os militares vêm se imiscuindo em assuntos de política. Por que será que isto está acontecendo? Por que parte da população vocifera o retorno de medidas como o AI-5 (Ato Institucional n.º 5) que inaugura o período mais truculento desde que os coturnos assumiram o poder em 1964, tendo ocorrido torturas de adultos, jovens, crianças e bebês, bem como de mortes e desaparecimentos de opositores, chegando à tentativa de se forjar um atentado a bomba no que ficou conhecido como o caso do Riocentro em 1981? Parece-me que as solicitações não partem somente daqueles que vivenciaram aqueles momentos tristes de nossa democracia, pois violentar, agredir, torturar quem pensa diferente, é monstruoso, indicando que o ser humano é incapaz de conviver com a adversidade e diferenças, situações registradas apenas nos períodos medievais. Se isso é fato, por que pedir a volta da prática sistemática da violência orquestrada por um Estado – belicoso conduzido por generais violentos – cuja criação deve sempre ser a partir da vontade popular?
Creio que as respostas às interpelações formuladas nas linhas acima, podem ser encontradas a partir do momento em que o sujeito que se predispuser a campeá-las, não somente no mundo externo, mas também em seu próprio interior. Por que pedir truculência numa sociedade democrática? Por que desejar um governo autocrata que, outrora vociferava que seria o primeiro a combater a corrupção, mas está de casamento marcado com o que há de mais corrupto no Congresso Nacional? Por que ir às ruas pedir o fechamento do Legislativo Brasileiro e do STF? Será que não seria muito mais fácil fazer as devidas trocas dentro do processo democrático e eleitoral? Ou saber como funciona a Corte Suprema e seus representantes são escolhidos? Posso dizer que o caminho seria a leitura do livro Os Onze: o STF, seus bastidores e suas crises (São Paulo: Companhia das Letras, 2019), dos jornalistas Felipe Recondo e Luiz Weber. Só não vale ficar dizendo que não tem tempo, mas espalha fake news aos borbotões pelas redes sociais. Talvez esse seja o atraso dentro da modernidade que o Brasil almeja alcançar.
Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail: gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.