Ana Paula Maia fala sobre o seu novo romance ‘Assim na terra como embaixo da terra’

O novo romance chega às livrarias pela Record em maio

Dura, porém necessária. Desse modo poderíamos, talvez, tentar definir a escrita de Ana Paula Maia. Dura como o cotidiano de seus personagens; seres embrutecidos por uma realidade cruel. Necessária porque revela a humanidade desses brutos, para quem sobra o trabalho sujo que ninguém quer fazer e o desprezo do restante da sociedade.

Contudo, escolher olhar para essas pessoas que “carregam o seu fardo e os dos outros” demanda uma sensibilidade incomum. Habilidade esta que Ana Paula possui e utiliza com maestria para retratar o submundo das sociedades urbanas contemporâneas em sua trilogia A Saga dos Brutos — Entre rinhas de cachorros e porcos abatidosO trabalho sujo dos outros (2009, publicados em volume único) e Carvão Animal (2011) — e no romance De gados e homens (2013), obras nas quais a autora carioca destrinchou o dia a dia da criação de animais, abatedouros, carvoarias, crematórios e aterros sanitários.

Sem abandonar seu estilo franco, potente e impiedoso, Ana Paula vem contar agora os últimos dias de horror de uma colônia penal em vias de desativação, tema do seu mais novo romance: Assim na terra como embaixo da terra.

Ana Paula Maia é escritora e roteirista. Tem cinco romances publicados, destacando-se Entre rinhas de cachorros e porcos abatidosCarvão animal e De gados e homens, também publicados pela Editora Record. Tem livros traduzidos na Alemanha, Estados Unidos, Sérvia, França, Argentina e Itália.

Orelha do livro – por Marcia Tiburi 

Que mundo é esse criado na prosa de Ana Paula Maia, exímia artífice desses cenários cheios de intensidade cruenta e livre da tentação moralista que sempre julga antes de discernir? Que homens são esses, personagens de vidas malfeitas, de histórias canceladas, senhores e servos dos enredos mais brutais, das leis e poderes mais absolutos? Que chance têm essas vidas tão próximas da natureza, de tal modo entregues à sorte que não se pode dizer delas que conheçam a noção de desejo? Que gente é essa que experimenta a violência em sua forma mais direta, como se ela fosse a lógica cujo nome se evita dizer?

Homens que sobrevivem em tempos impossíveis, que morrem como matam. Entregues à severidade institucional, à precariedade da condição humana depois que se perdeu a política, eles são um milagre da espécie. O que tantos chamam de desumanização não seria senão o fracasso da política, a confirmação da guerra de todos contra todos com vantagens para poucos?

Este livro de Ana Paula Maia reconhece a colônia penal de Kafka em um tempo brasileiro, solar, seco. Talvez se inspire nele para organizar a crueza com a qual se ergue no horizonte da literatura contemporânea. É com a experiência árdua, livre de todo sentimento mais fino, que teremos de viver em qualquer campo onde formos concentrados como são os seus personagens aprisionados. Como sujeitos e como objetos, como caçadores e caças, como conceito e metáfora, os personagens desse romance – tão direto quanto um conto – nos confrontam e já não podemos fechar as páginas do espaço em que habitam.

Temos nestas páginas uma alegoria perfeita do estado de exceção. Seremos cativos de Assim na terra como embaixo da terra, não do mesmo modo como seus personagens, presos no absurdo que lhes coube em vida. A abjeta vida concreta submetida às instituições, nos tempos do encarceramento em massa, do cancelamento do valor da dignidade humana, não seria de algum modo nosso espelho?

Há escritos que fazem da leitura um momento de urgência. É como se, parado à nossa frente, alguém, com toda a força física ou mental, nos proibisse de ir adiante. Excessivamente viva, entre a reflexão e a vertigem, esta obra de Ana Paula Maia será lembrada como um instante de alta voltagem literária que desloca seu leitor de algum lugar confortável.

Trecho

Durante todo o fim de tarde, os homens permanecem entreolhando-se a distância, vez ou outra; seus semblantes refletem a ansiedade que sentem e algum fio de esperan­ça em ver os portões se abrirem e o oficial atravessá-lo. Estão no meio de lugar nenhum e não sabem nem em que região está localizada a Colônia. Do lado de fora, além da vastidão e dos espaços vazios, existe o silêncio empurrando-os para o nada.

 

Leia uma entrevista com a autora, parceria Livre Opinião – Ideias em Debate e Grupo Editorial Record

Uma parte significativa da sua produção literária é permeada por personagens que vivem em situações-limite: contato com a morte violenta, suicídio, crimes, doenças, miséria e falta de condições mínimas de vida. Como você vê ou explica sua atração/atenção por esse lado marginalizado e excluído da nossa sociedade?

Eu tenho uma atração por coisas que de uma certa forma eu acho que eu não conseguiria fazer, que me causam um certo horror. Alguma coisa que me faz pensar ‘eu não conseguiria fazer isso, eu não poderia fazer isso’, é um ponto de partida para mim. E eu também gosto dessa observação do outro, e daí também o distanciamento do gênero, porque eu gosto muito de escrever sobre personagens masculinos e de observar essa paisagem mais rural, gosto de histórias que se passam num âmbito mais rural, mesmo tendo morado sempre na cidade, no espaço urbano. Sempre morei no Rio. Então, eu gosto desse distanciamento de mim mesma, e eu gosto dessa contemplação. É uma coisa que me atrai. Saber de onde vem isso, eu não sei. De onde vem a contemplação por esses espaços e por esses personagens, e até mesmo por personagens que executam essas tarefas, essas funções… é difícil eu saber, mas são coisas que me atraem. Eu acho que rende boas histórias, eu acho que é um espaço que quanto mais eu entro nele, mais eu vou entendendo dele. Entendendo para mim, e isso acaba sendo levado para os outros. Seria muito difícil eu escrever sobre uma outra coisa, sabe? Tenho que escrever sobre um outro espaço, que é o que me toca. Mas as coisas que me movem dentro da ficção são esses espaços de estranhamento, dessas profissões difíceis e árduas. Eu gosto dessa aridez… esse texto econômico, porque os personagens também são econômicos, então o texto reflete o próprio personagem, o próprio cenário árido que está ao redor deles.

Você fala em encontrar um lugar de escrita de personagens e mundos distantes, de funções que você não conseguiria fazer, um lugar do outro apartado. Para você então escrever seria um pouco de tentar se aproximar do estranho, do distante… um certo ensaio em estar um pouco dentro do outro?

Ah, sim. Exatamente. É bem isso. O que a literatura me dá de mais especial no processo de criação mesmo — é o meu processo de criação, a parte mais importante para mim, que me satisfaz, que me completa, que me move — é a possibilidade dessa existência outra. Se eu não tivesse essa possibilidade eu acho que eu não teria interesse em escrever. Então ela é o que me move escrever. A possibilidade de entrar num lugar que não é o meu lugar, mas eu posso entrar incognitamente, sabe? Através desses personagens, não travestida por eles, ter a possibilidade de estar perto e observar. É sempre essa a sensação que eu tenho. Eu nunca me sinto um personagem, mas eu me sinto muito perto, muito próxima, e de fato onisciente, né? Nem sei se tão onisciente, porque tem coisas que acontecem que eu não domino exatamente. Tem personagens que eu não sei o que pensam exatamente. Talvez seja por isso que tem uma recorrência de personagens meus que vão surgindo num livro e noutro livro, porque eu vou conhecendo aos poucos… em outros livros, em outras ações também. Então é fundamental para mim essa possibilidade de uma outra existência enquanto eu escrevo. E essa multiplicação de existências, essa multiplicação de possibilidades, isso eu acho muito rico. Eu ter a minha vida, simples, urbana, doméstica, a vida diária sem grandes acontecimentos, e poder ir para um lugar que não está aqui e que é só meu. O lugar é só meu. Depois eu compartilho, com aqueles que vão ler. Mas é um espaço que é meu, um espaço para onde eu fui. É uma sensação de que eu fiz as malas e fui para lá, e eu tenho realmente essa vivência, que parte do meu dia eu vivo nesse lugar, e a outra parte do meu dia eu vivo aqui no meu lugar, de casa… na minha vida cotidiana. E de fato esse é o grande ponto para mim, para escrever. Essa possibilidade de outra existência. Daí talvez eu não conseguir escrever sobre uma ótica feminina, o meu mundo feminino, dentro do meu espaço de vivência… porque isso não tem o menor interesse para mim, porque eu já vivo isso. Então eu quero outras possibilidades.

Você falou sobre seus personagens irem retornando de uma obra para outra, à medida que você os conhece mais. Em seus livros você cria mundos a princípio muito distintos entre si, mas que se interpenetram por estarem relacionados de alguma forma com as vidas dos personagens. Como isso aconteceu na sua escrita? Tem mais algum motivo para essa recorrência?

Acaba sendo uma colcha de retalhos: a colcha é uma só com vários pedacinhos. Então como é o mesmo universo sempre e os espaços são muito parecidos, acaba se tornando muito mais propício eu trazer esses personagens; eles serem recorrentes. Por exemplo, o Bronco Gil que é o protagonista do Assim na terra como embaixo da terra, é um personagem que aparece pela primeira vez no livro anterior, que é o De gados e homens. Ele é o capataz da fazenda “Touro do Milo”. E eu gostei muito desse personagem, o Bronco Gil. Eu nunca tinha tido um personagem índio. Eu queria muito ter um índio como personagem. Mas não índio de cocar, ainda com aquela imagem inocente, mas não, um índio mestiço, exatamente como é o Bronco Gil. E eu gostei muito do Bronco Gil, eu acho que ele teve um excelente desempenho em De gados e homens, e eu percebo que quando o personagem tem um desempenho muito bom, quando ele me pega… eu falo, ‘não, esse cara tem que voltar em algum outro livro”. E quando ele surgiu em De gados e homens eu falei, ‘eu vou trazer esse personagem de novo’. Geralmente esses eu não mato, ele não pode morrer, tem que ficar vivo para um próximo livro. E aí quando eu fui escrever o Assim na terra como embaixo da terra, eu decidi trazer o Bronco Gil como protagonista, porque ele estava muito próximo de mim, era um personagem que eu queria trabalhar de novo, e eu achei que ele seria perfeito para aquele lugar, para aquele espaço. E Assim na terra como embaixo da terra é um livro que se passa antes do De gados e homens, na minha cronologia, porque meus livros têm um cronologia que não respeita exatamente a ordem de publicação. E geralmente meus livros são bem costurados, um referencia o outro, fala de um personagem, um acontecimento… As histórias podem ser lidas independentes, mas eu estou dentro de um mesmo universo, um mesmo espaço ficcional e eu não saio dele. Enfim, são esses desdobramentos infinitos que eu posso ter dentro de um mesmo universo. E isso eu acho que enriquece a obra de um autor, sabe?

A relação homem-animal é central para muitas de suas histórias. Ainda que por vezes haja em seus romances uma interação de ordem afetiva entre seus personagens humanos e animais, como em Assim na terra…há a afeição que Bronco Gil tem pelo cavalo crioulo da colônia, e a forma como detentos e o agente Taborda sentem a morte do vira-latas que lá vivia. Porém, em três momentos de seus romances percebo que se estabelece uma indistinção entre humano e animal, e essa indistinção se dá pelo abate. Edgar Wilson “abate” duas pessoas: Pedro em Entre Rinhas… e Zeca em De gados e homens. Já em Assim na Terra…, o narrador também faz essa referência ao abate, quando afirma que “Melquíades abatia os homens como quem abatia o gado.” Fiquei com uma impressão muito carnal desse momento de indiferenciação entre homem e animal. Para você esse seria o momento maior de encontro entre homem e animal? O momento da morte, quando ambos se tornam apenas um pedaço de carne?

Eu acho que essa relação homem-animal está muito entranhada na vida humana, da sociedade em geral. E a gente come a carne do animal, então isso é muito curioso, porque você carrega o sangue do animal em você. Se você come coelho, você está carregando o sangue do coelho em você. Você come um frango, você come o que frango era, né? Isso é muito maluco. E olha que eu como carne. Então, às vezes eu penso, ‘gente, eu como esse bicho aí!’. E se você come ele, se você se alimenta do sangue dele, você é um pouco ele. Ele passa a fazer parte de você também. E tem a nossa aproximação com os animais. Além de a gente comer e carregar o sangue desses animais dentro da gente, a gente tem essa relação, tanto de criar ou ter um animalzinho em casa. Ou como é estabelecido em Assim na terra… que é a relação do javali, que é a caçada do javali fazendo diretamente essa relação com a caçada humana. E esse javali entra de uma forma um tanto misteriosa nesse espaço, que está murado, então ninguém sabe mais como ele entrou ali.  E o javali é um animal que precisa ser abatido no nosso país, especificamente porque é um animal exótico, ele não tem predador no Brasil. Ele se reproduz muito rápido e acaba com as plantações, ele inclusive ataca pessoas. Ele precisa ser abatido a tiros. E é legal, o Ibama libera você abater javali em certas regiões do Brasil porque não tem como contê-lo a não ser matando. É uma praga. Então essa relação em Assim na Terra… é essa relação com esses homens que são caçados como animais, especificamente fazendo essa menção ao javali, que é uma praga também, né? É como se esses homens fossem uma espécie de uma praga, que fica confinada, e por fim acabam sendo abatidos por esse oficial que absorve aquela maldade, porque ele não tem outra vida, né? Ele vive tão confinado quanto os outros e começa esse processo louco de abate.

Você fala do javali em analogia a esses homens confinados e sua necessidade de serem caçados e mortos. A caçada está muito presente em Assim na terra… em vários aspectos. Mas principalmente em suas duas formas: a caçada sádica e covarde de Melquíades e a caçada de honra, onde o caçador deixa sua presa em igualdade de condições para que tenha êxito quem for superior. Fiquei com uma impressão de que o espaço da colônia também era uma arena. Você concorda?

Eu concordo. O espaço da colônia é um espaço de arena. E a caçada do Melquíades é cruel, mas ele tenta dar esse tempo, né? Esse tempo do sujeito poder fugir e se esquivar, mesmo ele sabendo que é praticamente impossível. E realmente existe uma ética na caçada. Existem uns regulamentos éticos na caçada e isso aparece na história por causa disso mesmo.

Tem essa coisa da arena, como em Roma, essa coisa toda de colocar o preso para duelar com um leão na força do braço, mas eu ainda acho que Assim na terra… é uma história de caçadores. Ela tem dois pontos: ela tem a questão do preso, do sistema carcerário, desse espaço de confinamento, dessa relação do confinamento dos homens. E esse abate é um abate que vem através da caçada. Então tem esses dois pontos que ocorrem dentro do espaço, que é a caçada ao javali e a caçada a esses homens, que acaba se tornando algo muito mais brutal, e muito mais desumano.

Assim na terra como embaixo da terra trata da situação de detentos numa colônia penal onde supostamente seria empreendida uma habilitação dos detentos para reinserção social. Só que na prática o local transformou-se num centro de extermínio dos condenados. A obra surge justamente num momento em que se discute a situação do sistema penitenciário no Brasil, com a ascensão de um discurso extremista e violento que se opõe às políticas de defesa dos direitos humanos. Para você, nesse debate qual o lugar da literatura que tematiza essa situação?

É que o livro aponta algumas coisas. Primeiro, uma coisa que está muito clara desde o início: é que são homens condenados, não tem homem bonzinho ali dentro, não tem inocente ali dentro, são homens julgados e condenados, sempre por crimes graves, envolvendo sequestro e assassinato. A maioria matou, praticamente todos ali dentro mataram alguém. Então você não tem inocente. O outro ponto é o ponto do confinamento desse espaço em que você tem esses homens cumprindo a sua pena, eles estão vivendo de uma maneira correta dentro daquilo que foi instituído para eles. E é esse espaço que mata, né? Que se apropria de fato do corpo. Numa das passagens do livro, o agente Taborda fala: o seu corpo não pertence mais a você. E é exatamente isso, o corpo não pertence mais a ele, ele não precisa saber para onde ele vai, ele não tem que saber de nada porque o corpo não é mais dele. Nada mais ali é dele, ele pertence ao Estado.

E o outro ponto é a vingança, que é quando um homem que teve a filha estuprada e morta consegue entrar no presídio com ajuda do Melquíades e espancar o assassino da filha até morrer, porque ele não conseguia mais viver sabendo que o homem estava vivo. E aí ele lava sua alma com sangue, de fato. Assim na terra é uma história que transita por esse espaço do confinamento, mas ela transita também por essa violência, por essa questão da vingança. A vingança é um dos grandes pontos do livro. O Melquíades, que é um personagem representativo porque ele acaba representando o Estado opressor (eu nem pensei nisso enquanto eu escrevia, mas ele de certa forma faz essa função), aqueles homens não querem ir embora, inclusive o próprio Taborda, sem antes se vingarem. Eles querem matar o Melquíades, né?

Eu não sei se isso traz uma mudança para a sociedade. Mas quando alguém lê, aquilo pode contribuir para a reflexão sobre a situação. Como aquela frase do “bandido é bandido morto”. Eu não levanto nenhuma bandeira nem para o sim nem para o não, o que eu geralmente faço é expor a situação, eu mostro os dois lados e as coisas vão rolando. Eu gosto de ver essas partidas. O que que vai acontecer. Eu nunca tomo um partido exatamente, mas eu gosto de ver o embate. Os meus livros todos têm embates. Mas a contribuição que isso traz é a contribuição de reflexão. Esse livro passa por várias questões e cada leitor vai poder ter suas camadas diversas de reflexão e de debate. E claro que é muita coincidência o livro sair meses depois de uma rebelião, eu jamais pensaria que seria uma coisa tão próxima. E acaba que eu lanço um livro com um tema que é muito instigante no Brasil, muito pertinente (eu já tinha vontade há anos de falar sobre sistema carcerário, num livro que se passasse nesse âmbito) mas no momento que de fato ele sai é um momento em que as rebeliões estão acontecendo.

Fora que é um assunto muito pouco abordado, talvez algum ensaio, mas dentro da ficção não. O que tem de mais próximo é Na colônia penal, do Kafka.

Você ressalta que ali não tem ninguém inocente. E quando eu fui chegando mais para o fim de Assim na terra… eu tive mesmo essa sensação de que não tinha ninguém inocente, não tinha uma diferenciação entre detentos e funcionários. Mas além disso, há uma sensação de desolamento por parte dos condenados porque eles são aqueles com quem ninguém se importa, o que os coloca numa situação de morte em vida, como você mesma falou, eles pertencem ao Estado, porque os superiores podem dispor de sua vida como lhes aprouver. Isso também tem a ver com o título, não? Porque eles estão numa condição de morte em vida.

Então, você tocou na questão do título, Assim na terra como embaixo da terra, sim, tem muita relação, essa coisa do corpo; esses corpos enterrados, esses corpos sobre a terra. E a primeira menção desse título é porque aquele espaço foi uma fazenda de escravos, e aqueles escravos eram torturados e mortos (apesar dos escravos não serem bandidos, certo?) Eles eram torturados, caçados, enfim, tudo o que acontecia, e eles eram enterrados naquele espaço. Aquela situação de morte e de confinamento que foi dos escravos é a situação atual da colônia. E uma ponte, uma relação direta que foi impossível, impossível mesmo, não abordar. Então veio a questão sobre a qual eu falo rapidamente porque não era a minha intenção me debruçar sobre ela, mas é uma questão que eu menciono com uma certa firmeza, é essa coisa dos escravos. Por quê? Você olha para uma cela de um presídio no Brasil, você tem uma presença imensa de negros e mulatos e afrodescendentes de um modo geral. Então quando eu fui falar do assunto, do sistema carcerário, foi impossível não lembrar da escravidão. Impossível você não pensar que uma cela de cadeia hoje no Brasil se parece muito com as celas em que eles ficavam confinados, no navio negreiro… você faz essa relação. E sabendo que a maior população carcerária do mundo está nos EUA e também com maior número de negros. Então quando eu escrevi esse livro, apesar de pensar no Brasil (que é um espaço que a gente vive mesmo essa crise, aliás ninguém mais vive no sistema carcerário, eu não sei de um país que viva uma crise como a que a gente vive aqui), eu pensei em fazer esse ponto com o passado, esse ponto com a questão da escravidão, que é algo histórico. A gente sabe que a situação da população negra no Brasil vem da escravidão.

E quando você esbarra no sistema carcerário você tem uma população em sua maioria negra. Então o título do livro tem muito essa relação. Na colônia tem um pouco de cada coisa, eu não fico pontuando muito a cor da pele dos personagens (apesar do Valdênio ser o único que eu falo que é um negro, os outros eu deixo um pouco solto) mas ali você tem uma mescla, uma mostra do que é o sistema carcerário no Brasil, dos personagens que o compõem. Então o título vem muito disso, fazendo essa menção ao passado, foi um assunto que era impossível não tocar porque está diretamente, estritamente ligado.

O local onde foi construída a colônia teria sido uma espécie de local de prisão, tortura e execução de escravos no passado: o Calvário Negro. Das origens históricas que levaram à condição marginalizada do negro em nossa sociedade atual, não há como fugir, como você acabou de colocar. Ao mesmo tempo, parece haver uma aura de mistério e maldição no terreno usado para a instituição da colônia. Você concorda com essa interpretação? Como você encara a presença da espiritualidade em suas obras?

Sim, a espiritualidade existe. Mais no De gados e homens e agora nesse, nos outros eu não explorei tanto. Tem sim uma coisa de espiritualidade no O trabalho sujo dos outros, que tem um bode, e esse bode é meio místico na história. No Entre rinhas… não tem uma espiritualidade reinando tanto quanto no O trabalho sujo dos outros, mas é mencionado. Sempre tem uma aura de espiritualidade, que eu acho que vem paralela a um assombro, a algo que não se explica, a uma atmosfera de coisa assombrada mesmo. Mística. E meus livros têm essa característica, uns mais outros menos, mas isso é pontual nos textos. E em Assim na terra… aquele território é realmente um território manchado de sangue, de sangue inocente. O sangue que é derramado agora não é inocente, mas também não deveria ser derramado, né? Porque os homens já estão ali cumprindo pena, pagando por seus erros, então esse espaço é um espaço amaldiçoado sim. Ele é um espaço que tem uma carga pesada, uma energia ruim, negativa e tudo mais. E o que eu acho, aí é o meu lado leitora, porque eu não exploro isso na obra, é que essa loucura do Melquíades ao longo dos anos que ele viveu ali tem a ver com essa energia também, sabe? Ele vai enlouquecendo gradativamente, mas também por conta desse Mal que ronda o lugar. Há alguma coisa estranha que não se explica ali. E eu sou muito ligada nessas histórias de assombração, de coisas assombradas e amaldiçoadas, é um interesse meu. Sou muito ligada em filme de terror e tudo mais, mas eu não levo isso muito para o meu trabalho, não cabe. Eu não sei escrever histórias com essa carga toda. Mas quando tem espaço, eu coloco. No De gados e homens houve espaço e em Assim na terra… há espaço, de uma forma sutil, mas há espaço. Eu acho que são coisas que estão conectadas.

Existe uma leitura possível onde pode-se comparar as condições e funções da colônia penal com as dos campos de extermínio nazistas. Inclusive pela semelhança entre a frase inscrita acima do portão da colônia e a frase comum à entrada de muitos campos de concentração nazistas. Essas identificações foram intencionais?

É, tem tudo a ver. Eu tirei justamente dessa inscrição dos portões dos campos de concentração, que é “O Trabalho Liberta”, ou algo assim. E no livro é “A correção nos torna livres”, diretamente fazendo uma menção aos campos de concentração nazistas.

Entrevista e texto inicial por Nicole Alvarenga Marcello

 

Disponível no site https://livreopiniao.com/2017/05/16/em-entrevista-ana-paula-maia-fala-sobre-o-seu-novo-romance-assim-na-terra-como-embaixo-da-terra-onde-se-passa-em-uma-colonia-penal-prestes-a-ser-desativada/ (acessado no dia 16/05/2017 às 11h59).

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