Amanhecer esvaziado

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Por mais que se busque uma saída para situações complexas que parecem ser de simples resoluções, mais as ações, fruto de desejos atrozes, se repetem e por que será que isso vem ocorrendo de maneira corriqueira, meus caros leitores? Antes de tentar equacionar uma resposta plausível, entendo que há um certo enfado em ficar abordando querelas que parecem ser eternas, conforme as análises mitológicas podem evidenciar, deixando claro que a humanidade passa, de tempos em tempos, por períodos cataclísmicos e talvez isso ainda aconteça por conta de sua condição emocional. Não adentrarei nessa questão, justamente por ser ela portadora de um nível de fecundidade que talvez não dê para ser abordada de forma satisfatória nesse espaço, entretanto, isso não impede de refletirmos sobre ela. Senão vejamos.

Embora já tenha tratado desta problemática não uma, mas várias vezes, me parece ser importante ressaltar, ainda que tardiamente ou sucintamente, a temática, levando em conta o momento em que a humanidade vivencia e não preciso me aferrar à pandemia, pois todos são cônscios de que o assunto está aí e, indistintamente, sabem, mesmo aqueles que, talvez por medo, tentam negar a situação periclitante em que se encontra a saúde em âmbito global. Quando se imagina que tudo poderá se arrefecer e a vida voltar ao normal – e há aqueles que acham que daqui para frente o normal será o que se vive no presente, isto é, uso de máscaras, álcool gel e a busca constante pelo distanciamento, quando se almeja totalmente o contrário, isto é, estar juntos. Posto isto, vos digo meus caros leitores – caso eu ainda os tenha -, que o desejo do ontem não se coaduna mais com o que pretende edificar num futuro não muito distante, justamente pelas marcas indeléveis que a pandemia, provocada por esse vírus e suas variantes, está deixando em todos nós, principalmente no que diz respeito ao medo e aqui, creio que seja interessante retomar uma ideia colocada pelo filósofo existencialista dinamarquês, Sören Aabye Kierkeggard (1813-1855), segundo a qual, o homem tem medo de ter medo e, em virtude disso, acaba se achando o super-homem e que nenhuma kriptonita poderá detê-lo. O resultado, lamentavelmente negativo, está sendo compartilhado enquanto o sistema de saúde está à beira de um colapso e as autoridades, constituídas eleitoralmente, se preocupando em demasia com o pleito de outubro.

Diante do exposto até aqui, me parece significativo propor uma reflexão que pode parecer um tanto quanto utópica, entretanto, como seria o vir a ser da humanidade se não existisse o desejo de construir um amanhã diferente do passado e isso é válido para aqueles que vivem apostando no retrocesso, ou melhor, tentando a todo custo, reviver um passado doloroso para muitos enquanto poucos se locupletavam com as consequências de linhas duras no campo da política, atitudes antidemocráticas e alinhamentos com governantes com fortes viés autoritários ou disfarçados de democráticos, mas que defendiam os interesses de empresas transnacionais. Não me deterei nessa temática, já que optei por tratar dela em outro momento. Compreendo que existem aqueles que batem no peito, dizendo que no passado, sim, a coisa era diferente e melhor, e aí é sempre importante recordar Machado de Assis (1839-1908) quando este informa, por intermédio do defunto-autor Brás Cubas, que ainda existem aquelas arraias medievais que vivem agarradas às paredes dos castelos modernos. O período foi-se, contudo, permaneceu o hábito, daí o autor de narradores oblíquos como o advogado Bento Santiago, ter indicado que antes de alterarmos as leis, é preciso que sejam modificados os hábitos. Creio que vem destes momentos pretéritos os saudosismos daqueles sujeitos que defendem a reedição de uma sociedade semelhante a existente na Idade Média, mais conhecida como “Idade das Trevas” – terminologia construída pelos humanistas setecentistas para indicar um tempo de ruinas e muitos flagelos, entre eles, a Peste negra.

Mas se há um séquito de fanáticos ávidos para vivenciar, por meio de olhares caquéticos, aqueles momentos de caça às bruxas, por outro existem aqueles que avançam, meio que sem desejar vislumbrar aquele pretérito. É neste sentido é que formulo outra interpelação sem pretender que a mesma personifique uma querela nesse começo de terceira década do terceiro milênio: será que há espaço para pensamentos medievais nesta pós-modernidade? Se há, seria interessante aprofundar a explicação para que se compreenda o desejo desse segmento que sonha com agressões, mesmo as simbólicas, movidas às perseguições ideológicas de todo viés. Claro que o assunto é assaz complexo, todavia, é preciso que seja encarado porque está se vivendo um período beligerante, de recrudescimento em que as pessoas se acham detentoras da verdade absoluta, sem, no entanto, olharem com a devida acuidade que do outro lado existem semelhantes que, apesar das divergências, não precisam ser aniquilados e nem derrotados, mas apenas que seus posicionamentos sejam compreendidos e tolerados. Neste sentido, é que creio que o nosso presente cheira a sepulcro medieval, pois é como se estivéssemos vivenciando aquela época em que se propunha a eliminação do oponente, mesmo que a oposição se mantivesse no campo das crenças, da política e de outras ideologias, sem, no entanto, haver o desejo de se derrubar um governo, uma ideia, por mais tosca que ela parecesse.

Por que se vive em tempos sombrios, como os atuais, vos pergunto meus caros leitores? A resposta não pode ser tão simplória, ao ponto de se dizer que a modernidade corrompeu tudo, já que a tecnologia nos trouxe enormes facilidades e ninguém deseja mais retornar aos tempos das velas, das máquinas de escrever, para não dizer da caneta-tinteiro. Neste exato momento em que estou cosendo essas linhas que poderão ou não ser lidas por pessoas que estejam do outro lado dessa página, diversas mudanças estão sendo conduzidas pela tecnologia, objetivando sempre trazer mais conforto ao ser humano, de um modo em geral. Se isso é fato e tendo a crer que si, então por que a satanização de toda a vida moderna? Pode ser que uma análise criteriosa leve os interessados a se deparar com um amanhã completamente desprovido de sentido, portanto, totalmente esvaziado, daí aquele medo do qual Kierkegaard, autor de obras como O conceito de angústia (Petrópolis, RJ: Vozes, 2015), nos fala. Se o futuro completamente esvaziado de um sentido dado pelo presente assombra o homem no aqui e no agora, isso significa que o ser humano ainda não é, e luta para ser algo, mas vem sendo carcomido pelo temor de não ter predicado que escude sua existência num amanhã, mesmo que tardio.

Enfim, diante do exposto, me parece que quando o homem abdica do direito de, por intermédio da razão, conduzir os passos que os levarão a uma outra realidade diferente da que se vivencia, está fadado a sustentar tiranos, autocratas que se consubstanciam com aqueles que adoram se locupletar com a ignorância alheia, prometendo, na outra ponta do balcão de negócios que se tornou a vida desde os primeiros da civilização, que tudo ficará bem, porém, não no agora, mas sim num futuro incerto, entretanto, é preciso reviver as indulgências veementemente sentenciadas pelo monge agostiniano e professor de teologia germânico, Martinho Lutero (1483-1546). Isso foi lá no medievo, hoje a situação e totalmente outra, mas há um desejo atroz de se reviver o passado intitulado como “Idade Média”. É interessante que todos nós, com as devidas acuidades, prestemos atenção aos passos que daremos em direção ao futuro, tendo como elemento fundamental, os erros pretéritos.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com, d.gilberto20@yahoo.com,   www.criticapontual.com.br.

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