Afinidades políticas, afetivas e de consumo

Gilberto Barbosa dos Santos

 

Para a conversa de hoje com meus leitores, escalei três textos, sendo que um deles não tenho por hábito usá-lo aqui dentro da perspectiva da intertextualidade, mas abrirei uma exceção nesta reflexão justamente por conta dos conteúdos que antecederão àquela enunciação religiosa. Posto isto, vos apresento o primeiro fragmento, retirado do recente livro que o cientista social Sergio Abranches lançou: O tempo dos governos incidentais (Companhia das Letras, 2020). No trecho que destaquei para o momento, ele diz que “a desestabilização generalizada que caracteriza a transição global provoca uma aguda perda de referências. Em um mundo dominado pela incerteza e pela insegurança, as pessoas apegam-se mais fortemente às suas afinidades afetivas, às identidades que lhes dão mais autoestima e segurança. Daí o fortalecimento das identidades, não necessariamente as tradicionais, de raça, gênero e religião, mas as socialmente construídas com base na identificação com certas reações àquilo que ameaça a segurança das pessoas. À fluidez e volatilidade das situações e das relações de trabalho, de vizinhança, de convivência social, respondem com o fortalecimento de laços com pessoas que reagem do mesmo modo a determinadas situações genéricas, a determinados estereótipos e rótulos. Essa tendência é reforçada pelo individualismo típico desta fase histórica que vivemos, cujo único padrão referencial é dado pelo consumo e pela necessidade cada vez maior de se virar por conta própria” (2020, p. 62).

O segundo fragmento faz parte de outro livro, desta vez da escritora norte-americana Toni Morrison (1931-2019): A fonte da autoestima: ensaios, discursos e reflexões (Companhia das Letras, 2020). O trecho é encontrado no capítulo Com uma raça em mente: a imprensa em ação. Em forma de desabafo, a estadunidense diz: “não sei por que é tão difícil imaginar e, portanto, criar uma sociedade genuinamente humana – não sei se as soluções estão nas ciências naturais, nas ciências sociais, na teologia ou na filosofia ou mesmo nas belas-letras” (2020, p. 64). O terceiro excerto estampa a Bíblia, mais especificamente o Evangelho de Lucas. No capítulo 16, versículos 10-13 é possível encontrar a seguinte observação: “Aquele que é fiel nas coisas pequenas será também fiel nas coisas grandes. E quem é injusto nas coisas pequenas, sê-lo-á também nas grandes. Se, pois, não tiverdes sido fiéis nas riquezas injustas, quem vos confiará as verdadeiras? E se não fostes fiéis no alheio, quem vos dará o que é vosso? Nenhum servo pode servir a dois senhores: ou há de odiar a um e amar o outro, ou há de aderir a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Bíblia Sagrada. 142.ed. São Paulo: Editora Claretiana, 2001, p. 1370). Como podem ver, meus caros leitores, essa passagem diz muita coisa, me permitindo fazer uma simples interpelação aos nossos políticos: será que tu, caro político, ama o povo ou o dinheiro público? Claro que responder a essa pergunta requer daquele que se coloca à disposição do eleitorado para administrar uma paróquia, uma profunda reflexão e uma olhada sincera em vosso espelho, a exemplo do que propõe Jostein Gaarden em seu romance “Através do espelho”.

Durante a campanha eleitoral é um tal de apertar a mão de fulano, de beltrano, beber água em mangueira, dizer que é o seu sonho ser prefeito, se esquecendo da principal observação: quem escolhe é o povo e não a vontade do postulante. Quando se tem políticos dessa envergadura, pode-se esperar de tudo, inclusive usar as Sagradas Escrituras e até Jesus, o Cristo para se dizer do povo, mas na calada da noite, para não dizer sorrateiramente nos subterrâneos dos palácios, ou ainda em festas e churrascos confabular para desviar recursos dos cofres públicos, principalmente das áreas mais sensíveis que são as principais fontes de atendimento às populações mais carentes, como a saúde. Sendo assim, fico cá com uma interpelação, meus caros leitores semanais: o que leva um sujeito e suas afinidades afetivas a orquestrarem desvios de dinheiro público? A pergunta pode ser dirigida à paróquia política local e seus chefes, mas também no âmbito geral, pois a corrupção grassa nesse país e não é de hoje, contudo, desde a promulgação da Constituição Federal em 1988, dois presidentes da República sofreram impeachment por corrupção durante o mandato e um terceiro tem quase 30 anos de cadeia para tirar. No momento, está livre no momento, mas a sentença já foi dada em segunda instância. E o que dizer do atual mandatário federal? Está com a Espada de Dâmocles a lhe assombrar dia e noite e, para fugir da queda no Legislativo, abraçou os políticos do chamado Centrão. Quem acompanha diariamente a política nesse país, sabe o que significa beijar a mão desse grupo de congressistas. Interessante notar que até outro dia estava ele vociferando aqui e ali, subia em palanques formados por brasileiros antidemocráticos que desejavam o fechamento do STF e do Congresso. Observemos que o seu filho deste governante federal disse certa vez que, para fechar as duas instituições, bastavam um soldado e um cabo, contudo, o que se observou tempos depois foi a volta da política nos moldes antigos.

Mandaram o cabo e o soldado para casa, pois haveria um banquete servido às autoridades constituídas eleitoralmente para dirigir esse país e foi propalado que se combateria a corrupção, entretanto, o que se viu foi uma repetição de 1989 e anos subsequentes, confirmando aquilo que Karl Marx (1818-1883) disse no seu clássico O 18 brumário: a história se repete: uma vez como farsa e outra como tragédia. O tio – Napoleão Bonaparte – pelo sobrinho, Luiz Napoleão. A análise é complexa, pois é preciso compreender a sua historicidade objetivando entender que Collor e Bolsonaro abusaram dos discursos rocambolescos e acusatórios durante suas campanhas. O primeiro caiu em desgraça, cedendo espaço para o seu vice que proporcionou as condições macroeconômicas para o surgimento do Real a partir da URV (Unidade Real de Valor). O segundo pegou a moeda brasileira em frangalhos e resolveu dar-lhe a extrema-unção ao se aliar a grupelhos que se dizem ultraliberais, mas querem apenas aumentar a quantidade de tributos cobrados à uma população que se apequena, não somente do ponto de vista econômico, mas sobretudo político, já que acredita em salvadores da pátria e nas mesmas verborragias toscas de mais isso e aquilo e de postulantes que só faltam beijar a mão de defunto alheio. Se bem que em tempos pandêmicos, não se pode fazer velórios como outrora em que postulantes a cargos eletivos puxavam em coro discursos antes de fechar o ataúde contendo os restos mortais do eleitor.

Esse é o Brasil, meus caros leitores, de antanho e do presente e lamentavelmente dos próximos anos. A pandemia e os problemas econômicos provocados pela recessão e a necessidade de isolamento social fez com que os governantes, principalmente os assentados nos palácios instalados na capital federal, inaugurassem até poste de energia elétrica e jurar que foram deles as ideias dos auxílios financeiros aos mais necessitados. Entretanto, esses discursos não resistem a um raio-X que apresenta não o que se vê, mas a essência daquilo que o esmalte e o verniz do bom mocismo escondem. É! Triste a Nação em que a maioria do povo escolhe seus postulantes por promessas farisaicas. Só me resta a dizer: Ame ou os deixe. Se a escolha for a primeira, cuidado para não comprar discurso embolorado e enrolado em corrupções aqui e ali. Durmam com um barulho desses, meus caros leitores! Ou façamos a conexão de sentido entre os três textos que usei na reflexão de hoje.

 

Gilberto Barbosa dos Santos, Sociólogo político, editor do site www.criticapontual.com.br, autor do livro O sentido da República em Esaú e Jacó, de Machado de Assis; professor no ensino médio em Penápolis; pesquisador do Grupo de Pensamento Conservador – UNESP – Araraquara e membro do Conselho Editorial e Científico da revista LEVS (Laboratório de Estudos da Violência e Segurança) – UNESP – Marília; escreve às quintas-feiras neste espaço: e-mail:   gilcriticapontual@gmail.com. www.criticapontual.com.br.

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