LUIZ FELDMAN
RESUMO O 80º aniversário do clássico de Sérgio Buarque de Holanda suscita debate na imprensa, iniciado na “Ilustríssima” do último dia 7. Neste texto, estudioso de “Raízes do Brasil” analisa como mudanças feitas por Buarque para a segunda edição (1948) de sua obra mais famosa a aproximaram do campo progressista.
Os 80 anos de “Raízes do Brasil” estão sendo bem comemorados. Nas últimas semanas, um debate plural, em diversos veículos, vem dando mostras de por que o ensaio de Sérgio Buarque de Holanda continua um clássico do pensamento nacional. A obra segue capaz de suscitar fortes discordâncias e críticas –e de sobreviver a elas.
Mas, como registrou Fernando Henrique Cardoso nas páginas da “Ilustríssima” de 7/8, é tempo de repensar a qualificação de “Raízes” como um clássico de nascença. Há oito décadas, a visão de Sérgio Buarque sobre o país diferia em importantes aspectos daquela que mais tarde se consagrou. Como procurei discutir em livro sobre o tema, as mudanças no texto foram fundamentais para conferir à obra o sentido progressista que hoje lhe é amplamente atribuído.
CORDIAL
Tome-se, inicialmente, a forma pela qual Sérgio Buarque abordava sua criação mais famosa, o homem cordial. A cordialidade foi enunciada em um diálogo criativo com os grandes intérpretes do Brasil à época, Oliveira Vianna e Gilberto Freyre. Esse vínculo foi eclipsado pelas críticas contundentes ao jurista fluminense e pela posterior supressão de generosas referências ao sociólogo pernambucano, mas é revelador de quanto “Raízes” dialogava com o pensamento político e social brasileiro dos anos 1920 e 1930 ao formular o seu diagnóstico central.
A cordialidade era uma síntese do legado colonial ibérico. De um lado, forte desejo de intimidade no trato pessoal, a humanizar as relações sociais no país; de outro, predomínio das emoções que impedia a fixação de normas impessoais e a construção da esfera pública.
A atitude de Sérgio frente a essas duas dimensões era ambígua: reconhecia a segunda, ao modo de Vianna, mas celebrava a primeira, na linha de Freyre. A nota de entusiasmo era perceptível.
A partir da segunda edição, de 1948, a cordialidade passa a ser vista basicamente por ângulo negativo. O autor risca um trecho que aproximava a cordialidade da bondade e acrescenta um esclarecimento (ou retificação) do conceito, ao asseverar que a cordialidade abrangia tanto relações de amizade quanto de inimizade. Faz, ainda, uma ressalva crucial: a cordialidade não resistiria ao desmoronamento do mundo ibérico em que havia surgido.
Nesse ponto, a reflexão histórica do livro se liga à sua discussão política. “Raízes” sempre se propôs a enfrentar a questão de como o país poderia fundar uma ordem pública e urbana moderna sobre a base desagregante de uma tradição familiar e rural. O que se altera são os termos da resposta, reformulada em 1948 em meio a vestígios da argumentação de 1936.
PROGRESSISMO
A edição original de “Raízes” avaliava que a progressiva urbanização, tornada irreversível pela abolição, aniquilaria nossas raízes ibéricas. O “cataclismo”, entretanto, seria “lento”. O personalismo, grande princípio político herdado dos portugueses, ainda tinha um papel a desempenhar na vida nacional durante a transição para o novo ciclo cultural representado pelo “americanismo”.
“Entre nós”, lia-se em 1936, “o personalismo é uma noção positiva –talvez a única verdadeiramente positiva que conhecemos. Ao seu lado, todos os lemas da democracia liberal são conceitos puramente decorativos, sem raízes fundas na realidade”. Essa passagem, depois excluída, ajudava a explicar a célebre frase sobre os brasileiros como desterrados em sua terra.
Personalismo e cordialidade são noções distintas, mas compõem o substrato de cultura contra o qual variadas doutrinas políticas importadas tentaram e não conseguiram se afirmar. Esse desajuste fora a razão do “lamentável mal-entendido” da democracia liberal no Brasil do século 19 e seria também, vaticinava o autor, a razão do insucesso dos totalitarismos que se anunciavam no horizonte.
Governar o Brasil exigia composição. Aqui, a abordagem ambígua da cordialidade se rebatia sobre a solução política do livro. A modernidade, sob forma de civilidade, só se implantaria no Brasil pelo “contraponto” com a tradição cordial. Aquela nos daria ordem, esta preservaria nossa identidade.
Sérgio Buarque não indicava que a democracia popular fosse o ponto de chegada ideal, nem sequer provável, desse processo. Tampouco o era o totalitarismo: o autor dizia preferir “outros recursos” para a “estabilização” do organismo nacional, embora rejeitasse como fraude liberal a “tese de que os expedientes tirânicos nada realizam de duradouro”.
Qualquer que fosse a posição última e exata de Sérgio Buarque, seu livro de estreia seria utilizado como base de uma das principais peças doutrinárias do Estado Novo. Em “Força, Cultura e Liberdade”, de 1940, Almir de Andrade partia da ideia de homem cordial para propor sua versão do contraponto entre cordialidade e civilidade: um “equilíbrio entre a tolerância e a força”, doutrina originalmente brasileira de governo.
A instrumentalização do ensaio em 1940 poderia ser mais uma entre as várias razões do desconforto de Sérgio Buarque com a edição original de “Raízes”. O certo é que, em 1948, o livro ressurge com a defesa engajada da ascensão das classes populares ao poder.
A tese é conhecida: a tradição ibérica como estorvo da travessia do passado privatista para o futuro democrático. A cordialidade passa a ser vista antes como obstáculo à civilidade do que como alternativa de fraternidade. Dentro do possível, as ambiguidades da discussão política são apagadas.
É só então que se afirma, no sétimo capítulo da obra, intitulado desde sempre “Nossa Revolução”, o brilhante jogo metafórico da “revolução vertical” que, ao trazer à tona os estratos oprimidos em substituição às “camadas superiores”, corrigiria a sociedade malformada “desde as suas raízes”. O aclamado progressismo do livro teve, aí, sua asserção definitiva.
José Murilo de Carvalho observou que “Raízes” teve um destino singular entre nós. Retomar as diferenças entre suas edições, sem tratar o texto definitivo como o único nem o original como o autêntico, é uma forma de compreender melhor a complexa trajetória da obra. “Raízes” sempre ofereceu uma impressionante visão histórica da formação nacional brasileira. Mas, entre 1936 e 1948, sua mensagem política se transformou. Bom assunto para a celebração desse clássico por amadurecimento.
LUIZ FELDMAN, 31, é ensaísta e diplomata, autor de “Clássico por Amadurecimento: Estudos sobre ‘Raízes do Brasil'” (Topbooks).
Disponível no site http://www1.folha.uol.com.br/paywall/signup.shtml?http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2016/08/1804828-a-importancia-de-se-falar-da-mutacao-ideologica-de-raizes-do-brasil.shtml (acessado no dia 21/08/2016 às 22h02).